A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
XIV. O TERCEIRO PILATOS: O MEDO
Não se deve perder de vista durante essas
laboriosas negociações o coração de Jesus Cristo. De pé, sempre atado,
digno e silencioso, o Mestre lá está que tudo segue e tudo aguarda: que íntima
tortura! Continua Ele a assistir à Sua progressiva decadência; cada minuto
fá-lO descer. E, inversamente, a cada minuto Ele vê subir a onda popular que
vai arrebatá-lO. Ao lado dEle agita-se aquele só que O pode salvar: esse tem
apenas uma palavra a dizer, mas esta palavra ele não a ousa dizer. E Jesus tem
pena, cala-Se; e, nesse silêncio profundo, pensa em todos os Pilatos do futuro;
Há-os públicos, há-os secretos.
Os públicos são todos os chefes de Estado que podem
sustar o mal, entravar a perseguição: sob o pretexto de não haverem sido eles
que fizeram a lei, varrem se si a responsabilidade. – Lava
as tuas mãos, Pilatos, elas ficarão limpas, mas a nódoa está no fundo da tua
alma, e aí ficará. A lei feita sem ti não podia ser executada sem ti. Tu
não tinhas feito a lei que condenava Jesus à morte, e, todavia Ele não morreu
senão por tua causa.
Os Pilatos secretos somos nós em face
da tentação, cedendo terreno de minuto em minuto diante do Barrabás vergonhoso
que se ergue entre nós e Jesus. Non hunc, sed Barabbam. Qui
potest capere capiat.
Se alguém teve de curtir uma cruel decepção, foi o
Procurador quando ouviu a exclamação de todo aquele povo em delírio. Uma
espécie de despeito apoderou-se dele: não terá ele então meios de sair-se
daquilo? Reponta esse despeito nesta palavra que ele lança ao populacho:
- Que quereis
então que eu faça de Jesus?
Foi então que prorrompeu como espontaneamente e
pela primeira vez este brado de morte:
- A cruz! A
cruz!
Pilatos pareceu revoltar-se. Zurziu os Judeus que
vociferavam com esta apóstrofe mordaz:
- Eu crucificar
o vosso Rei?
-A cruz! A
cruz! Respondeu a multidão.
O Romano fez como se não ouvisse. Volveu então ao
seu projeto de cruel flagelação; sem dúvida, a vista do sangue apaziguaria a
populaça.
- Vou mandar flagelá-lo, exclamou; é tudo o que vos posso conceder, porque, em
verdade, repito-vo-lo pela terceira vez, não acho nada nele que mereça a morte.
E mandou flagelá-lO; sabemos como os algozes se
desobrigaram, e em que estado reapareceu A vítima.
Ao primeiro olhar lançado sobre Ela, Pilatos
esperou que chegaria finalmente a tudo salvar. Que cólera, que ódio subsistiria
ante Aquele farrapo sangrento?
Ai! Ele não sabia que o sangue
embriaga os que o vêem correr. Ignorava que a sua covardia descendente o pusera
de nível com aquele povo, até mais baixo do que ele, e que, embora falasse do
alto do terraço, ele é quem agora estava dominado pela plebe.
- Eis o
homem! Exclamou ele.
Equivalia a dizer-lhes:
- Estais
satisfeitos agora? Acreditai bem que já lhe não dará a fantasia de se proclamar
Rei. Vede: eis o homem!
Os soldados haviam-se rido grosseiramente no pátio
interior quando O entrajavam com o manto escarlate e O coroavam irrisoriamente
de espinhos. Pilatos esperava que o ridículo entrajo de Jesus O salvaria, e que
Este poderia sair das suas mãos definitiva e moralmente morto pelas chacotas e
pelos riso. Porém a multidão já não ria. Mercê dos sacerdotes e dos anciãos,
chegara a esse grau de bestialidade em que já se não diverte com caretas,
frangalhos sangrentos e pauladas; até o sangue que escorre sob os flagelos já
não bastava para ela: já não a fazem rir quando ela reclama a morte.
Há neste brado tremendo: À morte! que sai de milhares de peitos, uma superioridade sinistra
que esmaga todas as vontades contrárias e aniquila todos os bons desígnios. À morte, ululava a plebe, e escandia
esse brado – temo-lo ouvido depois nas nossas revoluções múltiplas, - bem
decidida a não cessar de gritar enquanto não obtivesse aquela cabeça.
Pilatos balbuciava em vão algumas palavras que a
populaça não ouvia mais. O tumulto crescia.
- A cruz! A
cruz! À morte!
- Mas é o
vosso Rei, tentou gritar o procurador.
- Não, o
nosso Rei é César, redargüiam os sacerdotes que se conservavam na primeira
fila.
- A cruz! A
cruz! Continuava a uivar a multidão ao fundo, desdobrando e ampliando cada
vez mais a sua sombria linha invasora.
- Mas Ele
nada fez de mal, repetia desesperadamente o Romano, atestando uma vez mais
a inocência de Jesus.
- Disse-se
Filho de Deus, bradaram os sacerdotes; a
nossa lei é formal nesse ponto, por causa disso ele deve morrer.
Filho de Deus! Finalmente o grande agravo era
apresentado. Eles não tinham ousado até agora proferi-lo; pediam a morte para O
agitador, a morte pela recusa do imposto, a morte para o louco que se dizia
Rei: tudo isto, aos olhos de um homem judicioso e calmo, não justificava
semelhante pena.
Desmascaravam-se finalmente: a morte
para O blasfemador, pois se disse Filho de Deus.
A estas palavras, Pilatos tremeu. E por que, em
verdade? Ia ele crer na divindade dAquele ente escorchado, tiritante diante
dele? Não se sabe, mas de repente ei-lo que entra, manda trazer Jesus à sua
presença, argúi-lo insistentemente... não conhecemos tudo o que foi dito entre
aqueles dois entes a sós, face a face, o homem podendo salvar o Deus, e o Deus
querendo certamente salvar o homem. O que sabemos é que, ao cabo daquela
conversa solitária e misteriosa, Pilatos saiu absolutamente decidido a livrar
Jesus. Exinde quaerebat Pilatus dimittere eum. Enfim ele vai ser mais
firme e falar como senhor.
Tudo era, pois, novamente posto em questão. Era o
nó antes do supremo desenlace.
Não há dúvida alguma que Pilatos deve ter
manifestado essa intenção. Quaerebat. Procura, quer, forceja,
está decidido. Simultaneamente fraco e violento, ia
balançado de uma borda à outra, conforme o impulso. Agora está na borda
da coragem.
Compreenderam-nos os sacerdotes e os anciãos. Acaso
vai tudo escapar-lhes?
Jogam então o seu último e poderoso trunfo: e,
pegando-se do título de Rei com que Jesus se adornava e que Pilatos só fazia
relembrar-lhes, adiantam-se insolentemente:
- Se não o
condenas (logo, Pilatos estava novamente indeciso), não és amigo de César. Quem quer que se diz Rei opõe-se a César.
Sabia-se o que queria dizer esta palavra: opor-se a
César; César não sofria contradições e chamava-se Tibério.
É certo que esse Tibério estava na mole e
voluptuosa Capri, bem longe... Mas os delatores estavam em toda parte, e um
aceno do amo, mesmo de longe, como outrora a varinha de Tarquínio, fazia
tombarem todas as cabeças.
Num minuto Pilatos viu repassarem todos os antigos
quadros e a temível intervenção do imperador.
Volveu à borda da fraqueza;
agarrou-se-lhe desesperadamente, e largou tudo o mais.
Ensurdecido pelos clamores, bestificado por aquela
luta sem desfecho, sentindo todo o esforço fazer-lhe perder terreno, fatigado –
desculpado talvez aos seus próprios olhos –
por aquelas tentativas infrutíferas: Tradidit voluntati corum, fazei dele o que quiserdes, exclamou com
um gesto timorato e descoroçoado. Mas,
- e foi este como que o indigno consolo dado em último pábulo à sua
consciência, - mas ele é inocente, e eu
serei inocente, eu, da morte deste justo, e dela lavo as mãos, e vós
respondereis por esse sangue e por essa morte, vós.
Deplorável restrição, lastimáveis palavras, quando
uma só se lhe pedia, a única que ele devia dizer e que só ele podia dizer: Não quero.
Assim se epilogou, ao fim de quatro horas, esse
drama de violência e de covardia.
E agora Cristo se vai, está condenado, está tudo em
ordem, tudo deve estar justo: o Procurador assinou. Ele próprio escreveu a
grandes traços na prancheta de madeira: “Jesus
Nazareno, Rei dos Judeus”. É o crime, parece; poderia ter posto: Filho de Deus; teria sido igualmente
verdadeiro. E ele acaba de lavar as mãos repetindo: “Sou inocente da morte deste homem”.
Sim, pensa-o ele, talvez; porém, até o fim dos
séculos e para além, não se crerá tal, e repetir-se-á: Passus sub Pontio Pilatos,
crucifixus, mortuus est. Creio em
Jesus Cristo que padeceu sob Pôncio Pilatos e morreu crucificado.
Et nunc, reges, intelligite,
erudimini qui judicatis terram. E agora,
reis e juízes da terra, compreendei e aproveitai (Sl. 2,10).
(A subida do Calvário, pelo Padre Luís
Perroy)
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