“O
católico que coloca questões políticas à frente das doutrinais
é o sujeito que
concedeu indulgência plenária
à sua própria estupidez”.
Sidney
Silveira
A
exibição histriônica da humildade deixa, ipso facto, de ser humildade.
Isto pelo simples fato de que a humildade é, antes e acima de tudo, o
ato interior da vontade pelo qual alguém refreia o afã de ser louvado e
reconhecido, ao mesmo tempo em que se imbui de um notável espírito de serviço.
Mas aqui vem a pergunta decisiva: qualquer serviço? Não. Um milhão de vezes,
não! Os demônios, por exemplo, servem a Lúcifer — o superior deles na
hierarquia satânica — não porque sejam humildes, pois, como ensina Santo Tomás,
a obediência de uns a outros é tirânica. Em suma, entre os demônios a concórdia
na maldade não procede da amizade, a qual pressupõe o amor que lhes falta, nem
do espírito de humildade, mas do seu ódio aos homens e à justiça divina.[1] A
coincidência deles no mal se dá por meio de uma agônica submissão dos menos
poderosos aos mais poderosos.
Ratifiquemos
tudo isso com poucas palavras: nem todo servir é humildade. Há um servir
que é soberba pura, cupidez, engano, vontade de poder e de supremacia despótica
sobre as demais pessoas. Vamos a um exemplo simples: quando comparsas obedecem
ao chefe da quadrilha, o seu serviço nada tem de humilde, nem denota amizade ao
líder: ele provém do maldoso desejo comum de obter bens de maneira ilícita,
contrária à ordem da justiça. Aqui não existe o despojamento espiritual que
caracteriza a humildade, muito menos o fim bom que a especifica, moralmente. Em
síntese, a humildade é para o bem, por bem e com o
bem, daí ser a rainha das virtudes cristãs, do ponto de vista da razão prática.
Ademais, ela se baseia na submissão a Deus e no reconhecimento da nossa
absoluta miséria perante o Altíssimo. Não é o caso de desenvolver neste breve
texto o tema, mas deixemos registrado que um ateu humilde é mera contradictio
in terminis, porque lhe faltam os motivos conformadores da humildade.
Estabelecido,
pois, o princípio de que a humildade é um ato interior que radica na
vontade, e de que nem todo serviçal é humilde, falemos agora de uma antiga
forma de macaquear ou distorcer a humildade: associá-la exageradamente à
pobreza material e ao serviço aos pobres. Essa velha heresia tem um nome: pauperismo.
Foi condenada pelo Magistério da Igreja, e com toda razão. Segundo os seus
propugnadores, a pobreza é o sinal distintivo da virtude evangélica, não sendo
lícito possuir nenhum (!) bem material próprio, como também bens
comunitários. Tal doutrina possui um viés notadamente gnóstico — ou seja, de
aversão à matéria, como se esta fosse a distinção ontológica do mal —, e não
por outro motivo foi pregada entre cátaros, valdenses, e “espirituais”
franciscanos que, na Idade Média, fizeram de tudo para destruir a autoridade do
Papa e, por conseguinte, a força do Papado.
Imbuídos
dessa falsa humildade que encobria a mais insana soberba, tais homens tentaram
corroer os alicerces doutrinais da Igreja com incrível pertinácia, sempre
lançando mão de astuciosos sofismas. O Papa João XXII, que a propósito
canonizara Santo Tomás de Aquino, pôs fim aos exageros pauperísticos desses
fanáticos fraticelli, ao condenar a sua posição como herética e totalmente
contrária à verdadeira pobreza evangélica — a qual é voluntária, sim, mas
jamais absoluta. Em verdade, esses fraticelli não eram animados por
nenhum espírito fraternal, pois trabalhavam para matar um dos princípios que
transformam em irmãos os homens marcados pela fé em Cristo: a obediência à
autoridade do Magistério tradicional da Igreja. Eram, na prática, fratricidas
espirituais que procuravam transformar um conselho evangélico em
preceito, fazer dele um “dogma” fundamental, entre outras coisas porque eram
estrondosos analfabetos teológicos.
Passados
seis séculos e meio daquele período agitado em que se inicia o longo declínio
da Cristandade, a chamada “opção preferencial pelos pobres” foi a expressão
eufemística com a qual esta antiga heresia renasceu camuflada, no final da
década de 60 do século passado, com o verniz do marxismo e o mesmíssimo ódio à
autoridade (magisterial e jurídica) do Vigário de Cristo — assim como movida
por uma ojeriza invencível ao caráter monárquico e hierocrático do Papado.
Tratava-se, tanto na Idade Média como na época imediatamente posterior ao
Concílio Vaticano II, de uma verdadeira sedição empacotada em formato de
má-teologia, ou melhor: de diabolice com fumos de sabedoria teológica. Era o
surgimento da funesta Teologia da Libertação (TL), direta
ou indiretamente incentivada por clérigos vaticano-secundistas. Aqui
não nos custa lembrar que Joseph Ratzinger patrocinou a publicação da
tese de doutoramento de Leonardo Boff... Será que Ratzinger via hegelianamente
em Boff um teólogo de futuro?
A
disseminação desse joio marxista com o incentivo de homens influentes da
própria Igreja passou despercebida pelos tolos e pelos “otimistas”, que sempre
servem de fermento para as revoluções. A propósito, no caso do catolicismo, os
otimistas cegos são adeptos do esporte radical de cair das nuvens: não
dominando bem os princípios, são facilmente manipuláveis por quem os queira
deturpar, e depois se mostram “chocados” — com ar de donzela violentada —
quando não dá mais para sustentar a sua cegueira voluntária. São massa de
manobra bastante útil para o andamento da revolução que, há cinqüenta anos, vem
autodemolindo a Igreja. É o caso de pessoas que, a esta altura dos acontecimentos,
ainda acreditam no conto da Carochinha chamadohermenêutica da continuidade, e
se recusam a enxergar que a desgraça atual está essencialmente ligada aos
falsos princípios que inspiraram os textos do Concílio Vaticano II.
São
exatamente estes católicos deveras tolerantes para com os desvios e as
imprecisões doutrinais que parecem não enxergar a hidra marxista da TL,
por trás do discurso do Papa Francisco a favor de uma Igreja pobre e para
os pobres.
A
estes, vale lembrar algo que deveria ser óbvio:
Não
é papel da Igreja resolver o problema da pobreza no mundo. A função dela é
salvar as almas, valendo-se para tanto dos seus carismas, do seu ministério, do
seu Magistério, dos sacramentos, etc. É claro que os conflitos sociais e a
injustiça tendem a ser minorados numa sociedade que aceita o Evangelho, mas
isto nada tem a ver com a instituição de uma Igreja pobre e para os pobres.
Convém,
ao contrário, que a Igreja seja institucionalmente rica e politicamente
poderosa, para que não lhe faltem meios materiais para o exercício de seu múnus
salvífico, e para que ela não seja constrangida pelos poderosos do mundo em sua
atuação. A propósito, quando Platão — a certa altura da República —
nos diz que, numa sociedade ideal, é conveniente a riqueza estar nas mãos
de homens devotados às coisas do espírito (referindo-se ali aos
filósofos), e não com homens cúpidos, ímpios ou aproveitadores, nos aponta o
seguinte: mesmo o antigo paganismo tinha noção da hierarquia dos bens a ser
custodiados, para que os alicerces sociais se mantenham de pé.
Portanto,
não confundamos Cristo com Barrabás. A revolução de Cristo faz os Santos; a
revolução de Barrabás faz os Stálins. Ademais, não sendo a pobreza em si
um mal, nem muito menos um empecilho à salvação (o Evangelho inclusive nos
aconselha a ela, para melhor seguimento de Cristo), é flagrante
contra-senso pensar que a Igreja deva ser para os pobres. Ora, muito mais
do que para os necessitados materiais, o seu trabalho deve voltar-se para os
necessitados espirituais. É claro que isto não exclui o fato de que ela possa
incentivar a criação de irmandades voltadas ao auxílio aos pobres, como sempre
o fez, mas constranger ou reduzir a isto o seu papel é aberração, pura e
simples.
A
pobreza só é indigna fora dos princípios cristãos.
Francisco,
o humilde “Papa dos pobres”?
Agora,
muitas dessas pessoas que têm o hábito de se precipitar das nuvens estão se dizendo
“chocadas” com o ecumenismo do
Cardeal Bergoglio, eleito Papa Francisco; dizem-se temerosas de que
a sua salada
litúrgica, tão
contrária à sacralidade, e tão ao estilo pós-conciliar, tome conta
de Roma; escandalizam-se com a sua declarada
intenção de que a Igreja seja pobre e para os pobres; com o seu
constrangimento em dar bênçãos públicas, para não ferir a consciência dos
não-católicos, como na ocasião em
que agradeceu aos jornalistas que cobriram o Conclave, sem contudo
deixar de lhes dizer que, crendo ou não, “todos são filhos de Deus” (até então,
éramos filhos de Deus porque irmãos em Cristo, mas a nova fraternidade à
moda da Revolução
Francesa excluiu a filiação adotiva, a qual antes assumíamos
apenas ao aceitar Nosso Senhor e Sua Igreja); etc.
Não
conseguem ver a perfeita linha de continuidade entre todos os Papas
conciliares, que culmina no atual. Este, em pouquíssimo tempo de pontificado,
já mostrou a que veio, e o mundo começa a amá-lo, a “adorá-lo”. E não por
menos: trata-se do homem flagrantemente ecumênico na cúpula da Igreja, como o
mundo quer; do homem que, alegando humildade, dispensa até os tradicionais paramentos
papais e os chama de... carnavalescos! Do homem que é “humilde” porque anda de
ônibus, cozinha a própria comida e caminha entre o povo. Ó, humildade, flor das
virtudes cristãs, a que arremedo de si mesma te reduziram?
A
propósito, ao ler por estes dias no Frates in Unum (e depois checar
com outras fontes) as palavras que o Papa Francisco dirigiu, diante
de algumas testemunhas, ao cerimoniário pontifício Mons. Guido
Marini, enfatizando que “o tempo do
carnaval acabou”, referindo-se aos paramentos tradicionais, não pude
evitar as lágrimas, e foram muitas, muitíssimas. Mas não foram lágrimas de quem
foi pego de surpresa, e sim de quem vê o caos instaurado de forma humanamente
impossível de reverter — embora de Deus sempre possamos esperar o milagre
de reapostolicizar a hierarquia eclesiástica, fazê-la perder os pruridos
diplomáticos e as susceptibilidades baseadas na “liberdade de consciência”.
Os
católicos tradicionais — chamados de “tradicionalistas” por seus detratores
liberais — precisarão de uma dose suplementar de heroísmo para não sucumbir ao
tsunami que desponta no horizonte. A hora é de provação. Serão inculpados ou
acusados de ferir a “unidade” da Igreja, e em geral os acusadores serão
pessoas que mal leram um manual de teologia (quanto mais o Magistério
e os Santos Doutores), e por isso ignoram que a unidade cristã só se dá na
integralidade da fé. Serão caluniados por pessoas que acham que a defesa de
artigos da lei natural (como as questões relativas ao aborto, etc.) basta para
a unidade cristã, visto considerarem o aspecto político em primeiro lugar.
Ocorre o seguinte: o católico que coloca questões políticas à frente das
doutrinais é o sujeito que concedeu indulgência plenária à sua própria
estupidez; dele poderíamos dizer shakespearianamente que faz da ignorância a
melhor defesa. Mas não lhe respondamos; o melhor é calar perante quem confunde
solidariedade com caridade, politicagem com esperança e opinião pessoal com fé.
Pois
bem. Ao contrário do que pensavam Kierkegaard e Karl Barth, a fé não é um
salto no absurdo, mas sim um salto na mais ofuscante luz, como dizia o Pe.
Penido, eminente tomista brasileiro. E essa luz não é outra senão a da
cruz. Ad lucem per crucem: a caminho da luz, pela cruz. Este é o dístico
do cristão, que nada tem de bandeira ideológica ou política. E, num momento
como o atual, ele deve ser o guia maior para os que amam a Igreja e a vêem tão
dramaticamente desrespeitada. E não apenas pelo mundo, mas pelas próprias
autoridades eclesiásticas.
Aos
amigos tradicionais que porventura se sentirem constrangidos pelas difamações e
detrações que, a partir de agora, hão de se multiplicar, entre as quais o
doce apelido de "sedevacantista prático" é o mínimo, vale o
conselho: lancem em rosto dos acusadores o “dogma” por eles defendido (implícita
ou explicitamente) da intocabilidade da consciência individual. Esta
mesma que o recém-eleito Papa Francisco tanto demonstra respeitar nos ateus,
nos não-católicos e nos adeptos de outras religiões.
Mostrem
a eles que vocês não podem contrariar as suas consciências católicas, pois
a isto seria preferível a morte.
_______________________________________
1-
Cfme. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.109.
Fonte: A Grande Guerra
Fonte Original: Contra Impugnantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário