A IMITAÇÃO DE CRISTO - TOMAS DE KEMPIS
LIVRO TERCEIRO
CAPÍTULO 31
Do desprezo de toda
criatura, para que se possa achar o Criador
1. A alma: Senhor, muita graça ainda me é necessária para
chegar a tal ponto, que nenhum homem nem criatura alguma me possa estorvar.
Pois, enquanto me detém alguma coisa, não posso voar à vós livremente. Aspirava
a esta liberdade o profeta, quando dizia: Quem me dera asas como a pomba, para
poder voar e descansar! (Sl 54,7). Que há de mais sereno que o olhar singelo, e
quem é mais livre que o homem sem desejo terrestre? Por isso importa
elevares-te acima de todas as criaturas, e renunciares totalmente a ti mesmo, e
naquele arroubo da alma perseverares e compreenderes que o Autor de todas as
coisas não tem semelhança com as criaturas. E quem não estiver desprendido das
criaturas, não poderá livremente atender às coisas divinas. Por isso se
encontram tão poucos contemplativos, porque raros são os que sabem desapegar-se
de todo das coisas perecedoras.
1. Para isso é mister graça poderosa, que levante a alma e a
arrebate acima de si mesma. Enquanto o homem não for elevado em espírito, livre
de todas as criaturas e todo unido a Deus, pouco vale quanto sabe e quanto
possui. Imperfeito permanecerá por muito tempo e preso à terra quem algo
estimar que não seja o único, imenso e terno Bem. Porque tudo que não é Deus é
nulo, e deve ser tido em conta de nada. Há grande diferença entre a sabedoria
de um homem iluminado e devoto e a ciência de um letrado e estudioso. Muito
mais nobre é a doutrina que vem do céu, por inspiração divina, do que aquilo
que o engenho humano adquire à custa de muito esforço.
2. Muitos há que desejam a vida contemplativa, mas não tratam
de exercitar-se nas coisas que ela exige. O grande obstáculo é que se detêm nos
sinais e coisas sensíveis, cuidando pouco da perfeita mortificação. Não sei o
que é, nem que espírito nos move, nem que pretendemos nós que passamos por
homens espirituais quando empregamos tanto trabalho e cuidado nas coisas vis e
transitórias, ao passo que raras vezes nos recolhemos plenamente a considerar
nosso interior.
3. Ai! Que, depois de curto recolhimento, logo nos dissipamos,
sem ponderar nossas ações em rigoroso exame. Não reparamos para onde se
inclinam nossos afetos, nem deploramos quão defeituoso é tudo em nós. Por ter corrompido
toda a carne o seu caminho (Gên 6,12), veio o grande dilúvio. Estando, pois,
corrompido o nosso afeto interior, forçosamente se há de corromper a ação que
dele se segue, patenteando bem a fraqueza interior. Só do coração puro procede
o fruto da boa vida.
4. Muitos indagam quanto fez uma pessoa, mas de quanta virtude
foi animada nem tanto se cura. Com diligência investigam se alguém é forte,
rico, formoso, hábil, bom escritor, bom cantor, bom artista; mas quão pobre
seja de espírito, quão paciente e manso, quão piedoso e espiritual, disso não
se faz caso. A natureza só considera o exterior do homem, mas a graça olha o
interior. Aquela muitas vezes se engana, esta espera em Deus, para não ser
iludida.
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