Por Gustavo Corção
Perdoe-me o leitor mais este convite que hoje trago para uma conversa em torno de temas filosóficos; e não julgue que eu esteja buscando, nesta seção do jornal, um refugio ou um bálsamo que me compense dos sofrimentos que, nas outras colunas, dão-me os fatos que tenho de comentar. Não oculto que mais de uma vez, nesses últimos tempos, fui atacado pela tentação de deixar o mundo correr sem a pretensiosa necessidade de pesponto meu no grande pano da história. Com a boa desculpa dos serviços já prestados, em termos de anos ao menos, tal e qual como fazem os homens de vocações marciais, eu vestiria um pijama, um modesto pijama de jornalista ou de professor aposentado, e mergulharia num hobby que me trouxesse a atenção presa e a cólera distraída durante os dias que ainda tenho de saldo na minha conta corrente. Voltaria, por exemplo, a jogar xadrez. Na semana passada, um tentador, na amável pessoa do cearense Ronald Câmara, enviou-me um livro muito interessante intitulado Peões na Sétima, no qual, entre outras curiosidades enxadrísticas de maior relevância, o autor teve a amabilidade de abrir um capítulo para uma partida que joguei, em 1930, com o campeão argentino, e que, felizmente para mim e para a pátria, terminou num honroso empate.
O livro do sr. Ronald Câmara tocou-me a mola da saudade, a outra do
amor próprio, mas não conseguiu fazer-e voltar ao tabuleiro, mesmo porque —
talvez o leitor não saiba — não há jogo que exija mais mocidade do que o
xadrez. Aparentemente, o nobre jogo é um puro exercício mental, sem nada de
músculos e nervos. Na verdade, porém, o que joga não é a inteligência
especulativa, é a inteligência ligada diretamente à memória e à imaginação, que
são faculdades mais sensíveis do que puramente racionais. Não. A filosofia não
é trazida aqui como uma pura distração do espírito, ou como uma espécie de jogo
de conceitos. Por incrível que pareça, há uma interligação íntima, forte,
vital, entre os problemas que temos levantado em torno da história da
filosofia e os outros que comentamos em tons diversos; entre a noção de matéria
c forma, por exemplo, e os debates sobre nacionalismo, petróleo, internação da
capital, etc. Eu me exponho ao juízo severo e automático dos moços que
discutem desenvolvimento, finanças, educação, urbanismo, alimentação
estudantil, etc. etc. se disser que uma das coisas que mais falta no Brasil é
metafísica.
Basta,
aliás, soltar este vocábulo — metafísica — para logo se desencadear nos jovens
cérebros uma série de ações transitivas, como nos robôs, terminando numa
fórmula fulminatória ou num sarcasmo estereotipado. Nesta altura dos
acontecimentos, recomendar a metafísica, tentar recolocar a filosofia no trono
da cultura, deve soar nos jovens ouvidos como uma insólita proposta de
regresso à pedra lascada. E como «dês são muito moços, têm necessariamente
razão, uma vez que lá na doutrina que esposam, tudo é músculo. Insisto. Há
falta de filosofia, falta de linha com que se cosam as contas soltas que são
os fatos, os dados. Os que atribuem o atraso do Brasil e de outros países ao
imperialismo do capital colonizador, e que se riem de mim porque professo a
necessidade da metafísica, não sabem que estão fazendo metafísica em tudo o
que disserem, desde que creiam, por exemplo, que os termos correspondem a
conceitos, que por sua vez correspondem a entidades reais; e desde que, mal ou
bem, usem a noção de causa. Eles talvez pensem que metafísica é algo que se
prende à pedra filosofal ou que se relacione com maus-olhados, gatos pretos e
saleiros entornados. Todo mundo que estudou ao menos os rudimentos da nobre
ciência das matemáticas sabe que não poderia dar três passos sem antes firmar
as bases e aprimorar as definições. Ora, há coisas mais fundamentais e
anteriores às próprias definições matemáticas: a noção de definição, por
exemplo, a de princípio, de causa e de ser, são anteriores a qualquer das
ciências positivas. Precisam ser disciplinadas, postas em ordem, sondadas,
estudadas. Onde? Em que matéria estudará o moço a noção de causa? Na geografia?
Na história natural? Ou, quem sabe se pensam que é na gramática que se encontra
a explicação do conteúdo dos termos? Concluirão os jovens marxistas malgré enx
mêmes, que devemos banir do espírito tais cogitações, mesmo porque não temos
espírito para recebê-las?
Julgo
que é nesta linha, a da retração mental e da condensação de todos os assuntos
do universo em alguns poucos, como por exemplo o tratado de Roboré ou o
petróleo do recôncavo, que aliás variam com o tempo numa curiosa correlação com
os ventos da Rússia, julgo que é nessa direção, dizia eu, que devemos promover
o enterro definitivo da metafísica. Não se fale mais nisso, e acabou-se.
A
questão é que não há meio de não se falar mais naquilo tudo que a metafísica
implica, e se alguém quiser levar a purificação mental até a abstinência
completa das noções de causa, de unidade, de ser, etc. não terá outro remédio
senão ficar enrolando os dedos, num silêncio discretíssimo e total, como
aconselhava o mesmo grego aos céticos. O que resulta de tal atitude, sobretudo
se ela tende a se generalizar, é o que se vê: a sociedade que se abstém de
filosofia passará a filosofar mais do que nunca para provar que deve abster-se,
e sua filosofia será cada vez pior. É de uma temeridade espantosa pretender
que deva ficar implícito ou inconsciente, na vida intelectual, justamente a
parte basilar de que depende todo o teor da cultura.
A
moderna cultura, imbuída de critérios nominalistas, não demonstra muito anseio
de unidade, de organicidade; e quando mostra tal preocupação, é nas ciências
positivas, na soma delas, ou nas ciências sociais (a sociologia já foi
candidata à regência da cultura) que se procura a alma de uma civilização. Na
verdade, o que dá forma e unidade a uma civilização, a um todo cultural de
dimensões históricas, marcado por certos ideais concretos, só pode ser uma
filosofia e ainda mais, uma filosofia com uma metafísica na base. O mundo em que
vivemos, se tem alguma unidade e alguma forma, ainda que o não queira, é da
filosofia que professa ou que usa nas fórmulas de metafísica implícita ou
inconsciente, que tira aquela consistência.
Não
digo que seja necessário para a perfeição de uma quadra histórica, o estudo
pormenorizado da filosofia por parte de todos os seus habitantes. Basta que o
diapasão correto esteja no ar, que os valores sejam propostos à opinião
pública na sua justa posição, que as fórmulas mais científicas da metafísica
produzam ecos culturais de senso comum, de geral assentimento; basta a
retificação das pontas, dos vértices da sociedade, para que a grande maioria de
vontades ou inteligências disponíveis, neutras, acompanhe o passo da dança. Sob
o ponto de vista das causas materiais (que não convém nunca subestimar ou
desprezar) é verdade que o mundo é conduzido por marés poderosas que vêm das
chamadas massas populares. E é verdade que nesses movimentos de massas, à
medida que sobe o número, baixa o teor de racionalidade, de liberdade, de
específica humanidade. Santo Tomás de Aquino observa que é perfeitamente
lícito o emprego de um moderado determinismo, ou de um probabilismo, quando se
trata de grandes números. Mas não é menos verdade que essa mesma massa, esse
mesmo grande número estão sujeitos e são sensíveis às formas propostas por uma
minoria ativa. Não há exemplo mais estridente disto do que o próprio marxismo,
que se tornou uma espécie de bambolê com que milhões de homens dançaram, tendo sido
lançado por uma pequena fábrica alemã. A história vai assim, aos trancos e
barrancos, dependendo em cada instante do fator que prevalece. Ora é a idéia,
conduzida por uma minoria; ora é a inércia, o ímpeto obscuro e irracional dos
movimentos coletivos desencadeados em período anterior por alguma idéia de
algum pequeno grupo. E nesses movimentos irracionais das massas é preciso
incluir muitas academias de aparentes líderes da idéia mal assimilada.
Aqui
em nosso meio, os movimentos do marxismo estudantil pertencem mais à causa
material do que à formal. São repetições caligráficas, pueris, do que não
chegaram a aprender, e do que professam para terem ar de quem está inserido no
grande ciclo, ou para fugirem à solidão das perplexidades sem eco.
O
ponto em que insisto é o da importância da metafísica na estrutura da
sociedade. Só ela, como teologia natural, pode dar unidade a uma cultura, e
algum entendimento entre os homens.
Mas
há, evidentemente, uma metafísica verdadeira e outra errônea; uma boa e outra
má; uma genuína e outra falsificada. Creio que a pior, a mais falsa e mais
errônea das metafísicas é aquela que se faz para se demonstrar que não há
metafísica ou que foi superada a necessidade dela.
Diário
de Noticias, 21 de fevereiro de 1960
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