quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Santo Tomás de Aquino, por Chesterton.


Artigo de G. K. Chesterton, publicado originalmente na revista The Spectator, em 27 de fevereiro de 1932, antes do autor lançar seu livro sobre Santo Tomás de Aquino.


Tradução: Rafael Carneiro Rocha

A dificuldade de falar sobre Santo Tomás de Aquino neste breve artigo é selecionar qual aspecto de sua mente multifacetada seria melhor para sugerir a dimensão ou a escala dela. Por causa do seu corpo opulento que carregava seu igualmente maciço cérebro, ele era chamado de “O boi”. É assim: qualquer tentativa de reduzir tamanha inteligência para um artigo de tablóide se parece com todas as piadas possíveis sobre um boi numa xícara de chá. Ele foi um dos dois ou três gigantes; um dos dois ou três maiores homens que já viveram; e eu não ficaria surpreso se ele realmente fosse, independentemente da santidade, o maior deles. Outra maneira de considerar Santo Tomás de Aquino com outros gigantes é assumir que a proporção varia de acordo com o que os outros homens são comparáveis ou não a ele. Não teremos uma escala de grandiosidade até constatar que poucas criaturas históricas poderiam rivalizar com o santo.

Assim, para começar, poderemos situá-lo no contexto da vida ordinária de seu tempo e narrar suas aventuras no meio dos contemporâneos dele. Sozinho, ele lançou uma luz sobre a história, a despeito da luz que lançara sobre a filosofia. Nascido em berço de ouro, não muito distante de Nápoles, quando este filho de um grande nobre de Aquino revelou seu desejo de se tornar monge, pareceria, de acordo com aquela época, que tudo seria facilitado para ele. Uma figura influente poderia ser admirada, com decoro, na hoje antiga rotina dos beneditinos; como o filho mais novo de um escudeiro teria se tornado um pároco daquelas redondezas. Mas o mundo de então havia sido pisoteado em todos os seus caminhos por uma revolução religiosa. Quando o jovem Tomás insistiu em se tornar um dominicano – um frade vagante e pedinte – seus irmãos se utilizaram de táticas como perseguição, sequestro e silêncio no cárcere. Era como se o filho de um latifundiário se tornasse um cigano ou um comunista. Contudo, ele conseguiu se tornar frade e o discípulo preferido do grande Santo Alberto Magno (1). Em seguida, se estabeleceu em Paris, onde foi um proeminente defensor das ordens mendicantes (2) que surgiam em Sorbonne e onde quer que fosse. Adiante, ele se encontrou no cerne da controvérsia sobre Averróis (3) e Aristóteles, que refletiu na reconciliação entre a fé cristã e a filosofia pagã. Mesmo em sua vida social, as preocupações de espírito lhe ocupavam muito. Homem grande, corpulento, manso e bem-humorado, às vezes era dado a transes. Durante um jantar com São Luís (4), o rei francês, Santo Tomás ensimesmou-se de tal forma que, subitamente, bateu na mesa com o punho e bradou: “Isto vai liquidar os maniqueus!” O rei, com a fineza irônica e inocente, pediu para um serviçal anotar o raciocínio de Santo Tomás, para que as palavras não fossem esquecidas.

Então, ele poderia ser comparado com santos e teólogos mais místicos do que dogmáticos. Como homem sensato, Santo Tomás era místico privadamente e, em público, um filósofo. Tudo bem que ele tinha “experiência religiosa”; mas ele não pedia, à maneira moderna, que outras pessoas racionalizassem sua experiência. Sua vivência religiosa incluía casos bem comprovados de levitação em êxtase; e uma aparição da Santíssima Virgem, que o confortou com a ótima notícia de que ele nunca se tornaria um bispo. Similarmente, poderíamos comparar a filosofia tomista com outras, nos aspectos em que se diferenciava de Escoto (5) ou São Boaventura (6). Mas não há espaço para distinções aqui, além de uma genérica: que Santo Tomás tende relativamente para o racional, enquanto os outros se aproximam do místico, ou poderíamos dizer, romântico. Em qualquer caso, é certo que nunca houve um teólogo maior, e provavelmente, nunca um santo tão grandioso. Porém, afirmar que ele era maior do que São Domingos ou São Francisco não sinalizaria (no sentido que pretendemos) para o quão grande ele foi.

Para entender a sua importância, devemos opor Santo Tomás a duas ou três possibilidades de credos cósmicos: ele é todo o intelecto cristão falando ao paganismo ou ao pessimismo. Ele argumenta ao longo dos tempos com Platão ou com Buda; e tem sempre o melhor raciocínio. Sua mente era tão vasta e suas conexões tão bonitas que sugeri-la seria discutir um milhão de coisas. Mas talvez a melhor simplificação seja esta: São Tomás confronta outros credos do bem e do mal, sem negar todo o mal com uma teoria de dois níveis de bondade. A ordem sobrenatural é o bem supremo, como para qualquer mística oriental; mas a ordem natural é boa,  tão solidamente boa como é para qualquer transeunte das cidades. Isto é o que “liquida os maniqueus”. A fé é maior do que a razão, mas a razão é maior do que qualquer outra coisa, e tem direito supremo em seu próprio domínio. Isto é o que antecipa e responde o clamor antirracional de Lutero e dos outros; como um poeta pagão me disse certa vez: “A Reforma aconteceu porque as pessoas não tiveram cérebro para entender Aquino”. a Igreja é mais imortalmente importante do que o Estado, mas por tudo, o Estado tem os seus direitos. Esta dualidade cristã sempre esteve implícita, assim como a distinção de Cristo entre Deus e César, ou a diferença dogmática entre as naturezas de Cristo. Mas Santo Tomás tem a glória de ter apanhado a duplicidade como indício de milhares de coisas; e assim forjou o único credo em que os santos podem ser sãos. Talvez ele apresenta, principalmente para o mundo moderno, o único credo em que os poetas podem ser sãos. Por agora não há ninguém para liquidar os maniqueus; e toda a cultura está infectada com um senso vago e imundo de que a natureza e todas as coisas atrás e debaixo de nós são más, e que só há glórias para os elevados eruditos. Santo Tomás exaltou a Deus sem diminuir o homem, e exaltou o homem sem rebaixar a Natureza. Desse modo, ele fez um cosmos do senso comum e a vientum terra, a terra dos vivos. Sua filosofia, assim como a sua filosofia, é do senso comum. Não se tortura o cérebro com desesperadas tentativas de explicar a existência, explicando-a. Os primeiros passos da mente tomista são os primeiros passos de qualquer mente honesta; assim como as primeiras virtudes de seu credo podem ser de qualquer camponês de boa vontade. Ele, que combinou tantas coisas, combinou também a sutileza intelectual e a simplicidade espiritual.

O sacerdote que compareceu ao leito de morte deste Titã da energia intelectual, cujo cérebro tinha devassado as raízes do mundo, perfurado cada estrela e caminhado por todo o universo do pensamento e até do ceticismo, disse que, ao ouvir a confissão do moribundo, imaginou de repente que ouvia a primeira confissão de uma criança de cinco anos.

Notas do tradutor:
(1) Doutor da Igreja, também conhecido como Alberto de Colônia, morreu em 1280. Foi pioneiro nos estudos de Aristóteles aplicados ao pensamento cristão e se dedicou a diversas ciências, como agricultura, física, mineração, navegação e química. 
(2) Os frades e as freiras das ordens mendicantes, como os agostinianos e os carmelitas, vivem em comunidades fechadas, mas tem apostolado vagante em serviço aos pobres. São Francisco de Assis e São Domingos são exemplos importantes de fundadores de ordens mendicantes, os franciscanos e dominicanos.
(3) Os árabes contribuíram para a redescoberta de Aristóteles na Europa medieval. O filósofo muçulmano Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Munhammad Ibn Ruchd, ou na denominação latina Averróis, foi um dos grandes estudiosos do grego naquela época. Porém, apesar de ter inspirado Santo Tomás, Averróis, que viveu um século antes dele, defendia teses que se chocavam com o pensamento cristão. Em sua teoria da dupla verdade, a alma é imortal e o mundo é criado (de acordo com a fé), e a alma é corruptível e o mundo é eterno (de acordo com a razão). Santo Tomás de Aquino, firme na tese agostiniana de que a verdade é única, se opunha ao naturalismo racional de Averróis.
(4) São Luís da França foi rei dos doze anos até o fim de sua vida, em 1270. É considerado um monarca cristão ideal, cuja aura de santidade afetou as épocas vindouras. Diversas insituições e locais ao redor do mundo recebem o seu nome.
(5) Beatificado em 1993 pelo Papa João Paulo II, Duns Scot (ou Scotus) se posicionava contrário à filosofia de Santo Tomás de Aquino.  Conhecido como o “Doutor Sutil”, ele sustentava a separação entre a fé e a razão. Viveu de 1265 a 1308.
(6) São Boaventura (1221-1274), contemporâneo de Santo Tomás de Aquino, foi eleito ministro-geral dos franciscanos. Assim como Escoto, sua filosofia tinha matiz agostiniana e confrontava o aristotelismo.

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