LIVRO QUARTO
DO SACRAMENTO DO ALTAR
Devota exortação à Sagrada Comunhão
Voz de Cristo
Vinde a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos
aliviarei, diz o Senhor (Mt 11,78).
O pão que eu darei é a minha carne, pela vida do mundo (Jo 6,52). Tomai
e comei, este é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória
de mim (Lc 22,19).
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele
(Jo 6,57).
As palavras que eu vos disse são espírito e vida (Jo 6,64).
CAPÍTULO 1
Com quanta reverência
cumpre receber a Cristo
Voz do discípulo
1. São vossas essas palavras, ó Jesus, verdade eterna, ainda
que não fossem proferidas todas ao mesmo tempo, nem escritas no mesmo lugar.
Sendo vossas, pois, essas palavras e verdadeiras, devo recebê-las todas com
gratidão e fé. São vossas, porque vós as dissestes; e são também minhas, porque
as dissestes para minha salvação. Cheio de alegria as recebo de vossa boca,
para que mais profundamente se me gravem no coração. Animam-se palavras de
tanta ternura, atemorizam-me os meus pecados, e minha consciência impura me
afasta da participação de tão altos mistérios. Atrai-me a doçura de vossas
palavras, mas me oprime a multidão de meus pecados.
2. Mandais que me chegue a vós com grande confiança, se quero
ter parte convosco; e que receba o manjar da imortalidade, se desejo alcançar a
vida e glória eterna. Vinde, dizeis vós, vinde a mim todos que penais e estais
sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Ó palavra doce e amorosa aos ouvidos do
pecador: vós, Senhor meu Deus, convidais o pobre e indigente à comunhão de
vosso santíssimo corpo, mas quem sou eu, Senhor, para ousar aproximar-me de
vós? Eis que os céus dos céus não vos pode abranger, e dizeis: Vinde a mim
todos!
3. Que quer dizer essa condescendência tão meiga e esse tão
amoroso convite? Como me atreverei a chegar-me a vós, quando não conheço em mim
bem algum em que me possa confiar? Como posso acolher-vos em minha morada, eu,
que tantas vezes ofendi a vossa benigníssima face? Tremem os anjos e os
arcanjos, estremecem os santos e os justos, e vós dizeis: Vinde a mim todos! Se
não fosse vossa essa palavra, quem a teria por verdadeira? Se vós o não
ordenásseis, quem ousaria aproximar-se?
4. Noé, o varão justo, trabalhou cem anos na construção da arca
para salvar-se com poucos: como me poderei eu preparar numa hora para receber
com reverência o Criador do mundo? Moisés, vosso grande servo e particular
amigo, fabricou a arca de madeira incorruptível, e revestiu-a de ouro
puríssimo, para guardar nela as tábuas da lei; e eu, criatura vil, me atreverei
a receber-vos com tanta facilidade, a vós, que sois o autor da lei e o
dispensador da vida? Salomão, o mais sábio dos reis de Israel, levou sete anos
a edificar o templo magnífico, em louvor de vosso nome, e celebrou por oito
dias a festa de sua dedicação, ofereceu mil hóstias pacíficas, e ao som das
trombetas e com muito júbilo colocou a arca da aliança no lugar que lhe havia
sido preparado. E eu, o mais miserável de todos os homens, como poderei
receber-vos em minha casa, quando mal sei empregar meia hora com devoção? e
oxalá que uma vez sequer a houvesse empregado dignamente!
5. Ó meu Deus, quanto se esforçaram esses vossos servos para
agradar-vos! Ai, quão pouco é o que eu faço! Quão pouco o tempo que gasto em
preparar-me para a comunhão! Raras vezes estou de todo recolhido, raríssimo
livre de toda distração. E, todavia, na presença salutar de vossa divindade não
me devia ocorrer pensamento algum impróprio, nem eu me devia ocupar de criatura
alguma, pois vou hospedar, não a um anjo, senão ao Senhor dos anjos.
6. Demais, há grandíssima diferença entre a arca da aliança com
suas relíquias e vosso puríssimo corpo com suas inefáveis virtudes; entre
aqueles sacrifícios da lei, que eram apenas figuras do futuro, e o sacrifício
verdadeiro de vosso corpo, que é o cumprimento de todos os sacrifícios antigos.
7. Por que, pois, se me não acende melhor o meu coração na
vossa adorável presença? Por que me não preparo com maior cuidado para receber
vosso santos mistério, quando aqueles santos patriarcas e profetas, reis e
príncipes, com todo o povo, mostraram tanta devoção e fervor no culto divino?
8. Com religioso transporte dançou o piedosíssimo rei Davi diante
da arca da aliança, em memória dos benefícios concedidos outrora a seus pais;
mandou fabricar vários instrumentos musicais, compôs salmos e ordenou que se
cantassem com alegria, e ele mesmo os cantava muitas vezes ao som da harpa;
ensinou ao povo de Israel a louvar a Deus de todo o coração e engrandecê-lo e
bendizê-lo todos os dias, a uma voz. Se tanta era, então, a devoção e o fervor
divino diante da arca do testamento, quanta reverência e devoção devo eu ter
agora, e todo o povo cristão, na presença do Sacramento e na recepção do
preciosíssimo corpo de Cristo!
9. Correm muitos a diversos lugares para visitar as relíquias
dos santos, e se admiram ouvindo narrar os seus feitos; contemplam os vastos
edifícios dos templos e beijam os sagrados ossos, guardados em seda e ouro. E
eis que aqui estais presente diante de mim, no altar, vós, meu Deus, Santo dos
santos. Criador dos homens e Senhor dos anjos. Em tais visitas, muitas vezes é
a curiosidade e a novidade das coisas que move os homens; e diminuto é o fruto
de emenda que recolhem, principalmente quando fazem essas peregrinações com
leviandade, sem verdadeira contrição. Aqui, porém, no Sacramento do Altar, vós
estais todo presente, Deus e homem, Cristo Jesus; aqui o homem recebe copioso
fruto de eterna salvação, todas as vezes que vos recebe digna e devotamente. Aí
não nos leva nenhuma leviandade, nem curiosidade ou atrativo dos sentidos, mas
sim a fé firme, a esperança devota e a caridade sincera.
10. Ó Deus invisível, Criador do mundo, quão maravilhosamente
nos favoreceis, quão suaves e ternamente tratais com vossos escolhidos,
oferecendo-vos a vós mesmo como alimento, neste Sacramento! Isto transcende
todo entendimento, isto atrai os corações dos devotos e acende o seu amor.
Porque esses teus verdadeiros fiéis, que empregam toda a sua vida na própria
emenda, recebem muitas vezes deste augusto Sacramento copiosa graça de
devolução e amor à virtude.
11. Ó graça admirável e oculta deste Sacramento, que só dos
fiéis de Cristo é conhecida, mas que os infiéis e escravos do pecado não podem
experimentar! Neste Sacramento se dá a graça espiritual, recupera a alma a
força perdida, refloresce a formosura deturpada pelo pecado. Tamanha é, às
vezes, esta graça, que, pela abundância da devoção recebida, não só a alma, mas
ainda o corpo fraco sente-se munido de maiores forças.
12. É, porém, muito para
chorar e lastimar a nossa tibieza e negligência, o pouco fervor em receber a
Jesus Cristo, em quem reside toda a esperança e merecimento dos que se hão de
salvar. Porque ele é a nossa santificação e redenção, ele o consolo dos
peregrinos e o gozo eterno dos santos. E assim é muito pra chorar o pouco caso
que tantos fazem deste salutar mistério, sendo ele a alegria do céu e a conservação de todo o mundo. Ó
cegueira e dureza do coração humano, que tão pouco estima esse dom inefável,
antes, com o uso cotidiano que dele faz, chega a cair na indiferença!
13. Pois, se esse augusto Sacramento se
celebrasse num só lugar e fosse consagrado por um só sacerdote no mundo, com quanto
desejo imaginas que acudiriam os homens a visitar aquele lugar e aquele
sacerdote a fim de assistir à celebração dos divinos mistérios? Agora, porém,
há muitos sacerdotes, e em muitos lugares Cristo é oferecido, para que tanto
mais se manifeste a graça e o amor de Deus para com os homens, quanto mais
largamente é difundida pelo mundo a sagrada comunhão. Graças vos sejam dadas,
bom Jesus Pastor eterno, que vos dignais sustentar-nos a nós, pobres e
desterrados, com vosso precioso corpo e sangue, e até convidar-nos, com
palavras de vossa própria boca, à participação desses mistérios, dizendo: Vinde
a mim todos que penais e estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei.
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