Fr. Manuel Sancho,
Exercícios Espirituais para
Crianças
1955
PARTE PRIMEIRA
A conversão da vida do pecado à
vida da graça
(Vida Purgativa. — 1.ª semana)
OS INIMIGOS DA ALMA
1. Quais são estes inimigos. —
2. O mundo. — 3. O diabo. — 4. A carne. — 5. As más companhias. — 6. A carne, o
pior inimigo. —7. As ocasiões de pecar.
1. — Já vimos que o pecado é o
único verdadeiro mal da alma, mal terrível que a afasta de Deus, seu último
fim. Ora, a alma tem inimigos que a impelem ao pecado, matando-a pela privação
da graça, e é óbvio que, depois de tratar do pecado, tratemos destes velhacos,
destes nossos inimigos mortais, e saibamos lutar com eles e vencê-los.
Segundo conta o catecismo, são
três estes inimigos: mundo, diabo e carne.
2. — O primeiro inimigo da alma
é o mundo. — Que inimigo grande nós temos! — direis, pensando que, ao dizer
mundo, me refiro a esta enorme bola em que vivemos. —Que inimigo grande e
redondo! — Não, não é a terra o nosso inimigo, muito pelo contrário. Ela nos dá
frutas nas árvores que cria, aromas nas flores, brisas perfumadas, peixes,
aves... Oh! é muito boa a mãe-terra!O inimigo de nossas almas são os homens que
habitam o mundo. Aqui torcereis o gesto, pensando que também vossos pais e
vossos amigos verdadeiros e eu mesmo pertencemos ao mundo, e bem certo é que
não somos inimigos vossos. Que mundo, então, será esse, inimigo das vossas
almas? O mundo inimigo de nossas almas é composto pelos “homens mundanos que
nos rodeiam”[1] pelos que não seguem a Cristo, pelos que com más máximas e
piores exemplos corrompem as almas. “A sociedade compõe-se... de homens que
guardam a lei de Deus e formam o número dos bons, e de homens que a infringem e
formam o número dos maus. Pois esta segunda classe, que com seus maus exemplos
ensina e provoca a primeira a pecar, é o primeiro inimigo da alma” (Ibidem).
Deste mundo falava Jesus Cristo
quando dizia aos Seus apóstolos que o mundo o desprezaria e perseguiria. Porque
este mundo inimigo da alma tem suas máximas contrárias às de Cristo. Cristo diz
que sujeitemos as nossas paixões, e o mundo diz que lhes demos rédea solta,
como aos terneiros sem domar; Cristo ensina a pobreza, e o mundo ama as
riquezas; Cristo procura a vida oculta e humilde, e o mundo procura a vida de
fausto e de brilho.
Um pequeno vai ao catecismo, à
missão, aos exercícios: é o espírito de Cristo que o anima a isso. Mas ele se
encontra com outros pequenos que se riem dele e o chamam de tolo e de carola. O
pequeno fica envergonhado e, em vez de acorrer lá para onde Cristo o inspira,
fica com aqueles incrédulos em embrião. Estais vendo? Já o mundo causou uma
vítima e apoderou-se de uma alma inocente.
Certa menina usa um vestidinho
modesto. Suas amigas, que vestem com indecência, zombam dela e lhe dizem que
com aquele vestido ela parece uma freira; que elas andam na última moda. A
menina chega a casa e tanto roga à mamãe, que esta lhe põe um vestido cujos
moldes devem ter sido cortados por diabos modistas. Estais vendo? Outra vítima
do mundo.
Terrível inimigo que, com seus
exemplos e doutrinas, arrasta inúmeras almas ao inferno!
Estas doutrinas que o mundo
ensina, muitas crianças as seguem sem se dar conta. Às vezes, as pobrezinhas
não têm ouvido outra coisa; mas, se frequentassem o catecismo, se lessem livros
bons, não acreditariam nessas patranhas que o mundo e seus sequazes mostram
como moeda corrente e como meio para viver felizes neste mundo, mas não no
outro. Às vezes acreditais muito razoável alguma máxima dessas que correm por
toda parte, e no entanto são falsidades, porque inteiramente contrárias à
doutrina do Evangelho. Se quiserdes então ouvir a voz interior da consciência,
ela vos ensinará a verdade. Terrível inimigo é o mundo, que, com seus exemplos
e doutrinas, arrasta inúmeras almas ao inferno.
3. — O outro inimigo da alma é o
diabo, velhaco de marca maior, enredador sempiterno. É um velho muito velho que
se apresenta sempre com cara emprestada, porque a sua nos espantaria.
Ordinariamente, para nos tentar, ele se serve do mundo e das pessoas que seguem
as máximas deste, e, enquanto estas lhe armam a peça, ele está , de palanque,
observando o efeito das suas velhacarias e esfregando as mãos de prazer. Além
disto, ele move os ventos das paixões e, por sugestões, faz ver as coisas
diferentes do que são. É um grande pintor cenográfico. Sabeis como é que os
cenógrafos pintam? Não pintam com pinceizinhos, nem medem com o
duplo-centímetro, nem olham as delicadezas: grandes brochas, vassouras quase, servem-lhes
para esse fim. Uma brochada aqui, um borrão acolá, um manchão mais abaixo... Já
está pintado. Colocam os bastidores convenientemente, aplicam focos de luz em
certas direções, e assim a decoração redunda num transunto da realidade. Mas há
que olhar para isso de longe, porque de perto o cenário parece um amontoado de
bastidores e de cordas, de borrões de várias cores, de montões informes de
coisas... enfim, um mare magnum. E as pessoas do público, encantadas com o
que vêem na cena, aplaudem calorosamente!
Pois assim é o diabo; é um
pintor cenográfico que nos diz: “Isto é bosque, isto é casa”, e nem é bosque
nem é casa. Mas o maldito usa de tão boa manha, dirige tais luzes sobre o que
pinta, que aparece como uma maravilha o que é um despropósito.
Joãozinho há dias que trama uma
diabrura. Pensa em fugir uma manhã para um sítio onde dizem que há um urso que
dança e ciganos que tocam e cantam, e depois representam uma comédia em que
saem reis, rainhas e acompanhamento de cavalaria. Assim dizem os anúncios.
Entrada barata. O barracão ele já sabe onde fica. Sua mãe deu-lhe um
dinheirinho para o caso de ele querer fazer alguma esmola. Mas, em vez de fazer
esta boa obra, ele guarda o dinheirinho bem apertado na mão...
O pequeno caminha pela rua
ensimesmado, e no seu interior trava-se este diálogo entre o seu anjo da guarda
e o diabo:
Olha, Joãozinho, — diz-lhe o
anjo — olha aquele aleijado que pede esmola: dá-lhe o dinheiro.
Não dês, tolo, — diz-lhe por sua
vez o diabo — ele te servirá para o barracão dos ciganos.
Tua mãe proibiu-te entrares em
barracão — sussurra-lhe o anjo.
Não faças caso de tua mãe por
esta vez — sugere-lhe o diabo. — As mães às vezes são exigentes demais, e ela
se esqueceu de que tens doze anos. Doze anos, e não poder entrar em barracões!
Isso é uma tirania!
Joãozinho, meu filho, — sussurra
o anjo — é o diabo quem assim te fala.
Joãozinho vacila; levanta a mão
para se benzer; quer invocar a Virgem Maria... O diabo já está dobrando o corpo
para se aprestar a correr e a largar a presa; mas nesse momento um diabo
auxiliar, que vai invisível à frente de uma turba de palhaços e de mulheres de
rua, desemboca com sua procissão na rua por onde vai Joãozinho, e soa uma
trombeta e um tambor e uma voz estridente apregoando a comédia... Joãozinho já
não vacila, e começa a andar rumo ao barracão, atrás daquela luzida tropa.
O anjo tutelar ainda lhe sugere
bons pensamentos, mas o diabo, que se lambe de gosto, pinta-lhe com as cores
mais vivas o barracão e seus prodígios. Joãozinho esquece-se de Deus, de seu
anjo, de sua mãe, e entra no barracão...
Não vos contarei o que ele ali
vê: vê coisas más, e sai dali tarde. Sente o aguilhão da consciência...
Tudo foi mentira: só é verdade que ele pecou gravemente, porque viu coisas
muito más... Quer levantar os olhos ao céu azul, tão belo, ai! quando ele era
bom, mas tão triste agora e tão sombrio... No fundo do seu coração parece-lhe
ouvir uma gargalhada: é o diabo que se afasta. Assim paga o diabo àqueles a
quem engana. Oh! maldito sedutor, que assim roubas a inocência de uma criança!
Pois tende cuidado, meus filhos,
de que ele não vos engane assim. Quantas vezes sentireis interiormente essa voz
sedutora que vos pinta o pecado com as mais vivas cores! Não duvideis: é a voz
do enganador; é a voz do diabo, inimigo declarado de vossas almas. Ele sabe
apresentar-se envolto em muitas galas, mas, se o vísseis tal qual ele é, vos
espantaríeis. Um santo viu-o, e tão horrível foi essa visão, que o santo teria
preferido todos os tormentos do mundo a tornar a ver esse infame, de tão
abominável catadura.
Mas não o temais, meus filhos,
porque o diabo não faz mal senão a quem voluntariamente se mete com ele em
razões. Olhai aquela infeliz Eva que se pôs a discutir com ele: coisa mui
diferente teria sucedido se, em vez de ouvir a voz da serpente, ela tivesse
agarrado um pau e lhe houvesse esmagado a cabeça. Mas foi tola, e o pagamos ela
e nós.
Já vistes os leões e as outras
feras que há nos jardins zoológicos para divertir o público? Estão metidos em
grandes jaulas de ferro. O público os contempla, atira-lhes pedrinhas e mesmo
se ri deles; mas os leões, tigres e ursos não podem dar uma unhada em ninguém,
porque estão encerrados nas suas jaulas.
Assim o diabo, como fera, está
encerrado numa jaula. A ninguém pode fazer mal, senão a quem dele se aproxima
voluntariamente. Não faleis com ele; não façais caso das suas tentações, e
vereis como ele foge, e vos rireis dele nas suas barbas de bode. Para
afugentá-lo é bom remédio fazer o sinal da cruz e invocar Jesus e Maria, porque
então o diabo foge disparado como um foguete.
Já vedes que o leão não é tão
feroz como pintam. Embora ladre, embora ruja, não façais caso dele: eis aqui o
melhor remédio: o desprezo; porque, sendo ele tão soberbo, isso o fere ao vivo,
e ele foge rugindo e maldizendo.
Fonte: A Grande Guerra
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