terça-feira, 30 de julho de 2013

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.





Havia de ter um termo a criminosa indecisão de Pilatos. Repelindo para cima dos pontífices a responsabilidade do deicídio, o Procônsul lava as mãos do sangue inocente, sem que, todavia, da cerimônia ridícula e seu tanto hipócrita, lhe saísse a consciência mais purificada.

Em fim de contas, por criatura tão de somenos, não se perca a amizade de César - pensaria o Procônsul - e pois que tanto o exigem os pontífices, seja o réu crucificado. Ibis ad crucem.

Não sem um frêmito de terror, acostou-Se o Divino Mestre ao instrumento do suplício. Era a cruz resumido compêndio de sofrimento e de vergonha, mas Jesus a recebe com submissão e religioso respeito, acolhe-a com alegria, com amor até; quem sabe mesmo se a teria beijado com transportes, apertando-a contra o peito, como a um ente querido e longamente acariciado.

Oprobriosa e infamante, não era a cruz tão somente o martírio, mas ainda, e principalmente, a vontade de Deus, o instrumento da nossa salvação, a fonte de todas as bênçãos, o cetro da Sua glória e onipotência.

E começa a Via-dolorosa, longa, acidentada, juncada de cardos e espinhos, que do Pretório vai ao Calvário, passando pela Porta judiciária. Vai na frente, e a cavalo, o centurião romano; seguem-se-lhe os condenados e a sua escolta; vêm após os auxiliares do algoz, com os instrumentos da crucifixão; aos lados e atrás, fechando o lúgubre cortejo, multidão imensa, homens e mulheres de todas as classes da sociedade.

Exausto da longa caminhada, arquejante sob o peso da cruz, coroado de espinhos, malferido e sangrento, vai Jesus acoimado de blasfemo, falso profeta, amotinador do povo. E, todavia, esse é o caminho que todos havemos de palmilhar, bom ou mau grado nosso.

A nossa cruz é a penitência, a nossa cruz são os mandamentos divinos, a nossa cruz são os deveres de estado, a nossa cruz é a luta contra as paixões más, são os males que proliferam na vida, é o esforço da virtude, é o heroísmo da santidade. Como homens e como cristãos, em bem ou em mal, assistidos da graça ou abandonados a nós mesmos. Só nos fica a liberdade da escolha, e, com essa liberdade, a salvação ou a condenação eterna.

* * *

Ao defrontar uma dessas vielas tão freqüentes nas cidades orientais, num grupo de mulheres desoladas, cujos lamentos abafados mal seriam ouvidos no ruidoso cortejo, eis se Lhe depara a Virgem Santíssima, aparição dolorosa e todavia confortadora e desejada.

Essa Mãe, tão pura e tão perfeita que a não sonharam os anjos do céu, Jesus a tinha criado especialmente para Si, preservada da mancha original, revestida de pureza imaculada, espelho de Seu próprio esplendor. Colocada nos confins da divindade, obra-prima das mãos do Onipotente, amou a Jesus com amor sem igual, sobretudo depois que esse seio virginal Lhe foi tabernáculo precioso e odorífero.

Déra-Lhe tudo: amor infinito, beleza infinita, pureza infinita, graça infinita, glória infinita. Por Ela, e só por Ela, esgotara a Sua Onipotência, e, sem embargo, não podia forrá-lA ao espetáculo humilhante da Sua paixão, Havia de comunicar-Lhe ao coração sensibilíssimo a mesma agonia que O prostrava a Ele, sob o peso da cruz.

É que ambos, nos decretos do Altíssimo, estavam como identificados na missão regeneradora do homem. Em seu papel de corredentora, cumpria que Maria Santíssima aceitasse o holocausto, oferecendo-O igualmente à Justiça divina. Carne da Sua carne, era mister que ambos esses corações se conformassem na comunhão dos sofrimentos, ambos generosos, ambos vítimas de amor, ambos por Deus e pelo homem irmanados no mesmo sacrifício.

Olharam-se um instante, olharam-se... e partiram. Ele, para o martírio do amor; Ela, para o amor do martírio.

Ajudado do Cirineu, transpõe o Mestre a Porta judiciária; vence penosamente a breve escarpa da colina. É o Calvário enfim, é a consumação do sacrifício.

Terminados os preparativos, já suspensos da árvore maldita os ladrões, que lhe seriam uma como guarda de honra, posto entre eles como entre eles o mais celerado, coberto apenas de um pano que Lhe cinge os rins, é Jesus levantado entre o céu e a terra, como indigno da terra que o repele, rejeitado do céu que o abandona.

Como é belo na hediondez das Suas chagas, quanto é digno de respeito na Sua fraqueza e abandono, esse Deus eterno pendente de uma cruz, levantando para o céu olhos de paz e de ternura.

E a cruz domina a cidade, e o império romano, e o universo inteiro, sinal insondável da justiça e da misericórdia de Deus, instrumento de castigo, penhor certíssimo de perdão.

O inferno deu um grito de furor e de triunfo. Clamores ímpios, rugidos de cólera satisfeita saúdam a vitória. Mas há aí também outros corações, outros olhos, outras mãos, outras vozes que se levantam para a cruz, e essas vozes, e esses olhos, e esses corações acolhem o sacrifício do Justo, oferecendo-lhe o tributo da piedade, do amor e da adoração. É Maria Santíssima, é o evangelista do amor, são as santas mulheres, são os discípulos e amigos de Jesus, são as almas puras, os corações penitentes, os pequenos e os humildes saudando a aurora da Redenção.

E Jesus, num esforço supremo, vencendo as dores que Lhe repercutem em todas as fibras do corpo, levanta os olhos para o céu, numa súplica derradeira e eficacíssima: "Perdoae-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem".

Há já três horas sofre Jesus o horrendo martírio.

O sangue, já de todo esgotado, aumenta-Lhe a palidez presaga; o rosto parece se Lhe vai alongando mais e mais; as linhas da face se adelgaçam, cavando-as fundamente; os olhos injetados fixam no espaço um ponto vago; os lábios se Lhe entreabrem, desmesurados, deixando ver, por entre os dentes, uns últimos láivos de sangue.

E a morte se aproxima; a morte, a necessidade suprema, fatal, inevitável; a morte, essa grande humilhação do corpo e da alma, esse combate encarniçado em que a vida, assediada de todos os lados, se empenha em luta desesperada; a morte, essa filha do pecado, que estende o cetro implacável sobre todos os filhos de Adão, para reduzi-los ao pó da terra; a morte se aproxima, medrosa, apavorada, indecisa, vacilante, como forçada pelo Autor da Vida.

E Jesus, dando um grande brado, grito evidentemente sobrenatural, não de homem, mas de um Deus que se despede, inclina a cabeça e rende o último suspiro.

Tudo está consumado. Nos torreões do Templo, lá em baixo, na cidade deicida, anunciam as trombetas a imolação do Cordeiro pascal.

Está fechada, para sempre fechada, a lei do terror.
Começa a lei da graça e do perdão...

Consummatum est.

(No Calvário por Dom Duarte Leopoldo E Silva, segunda edição, 1937)

Fonte: A Grande Guerra 

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