Havia de ter um termo a criminosa indecisão de
Pilatos. Repelindo para cima dos pontífices a responsabilidade do deicídio, o
Procônsul lava as mãos do sangue inocente, sem que, todavia, da cerimônia
ridícula e seu tanto hipócrita, lhe saísse a consciência mais purificada.
Em fim de contas, por criatura tão de somenos, não
se perca a amizade de César - pensaria o Procônsul - e pois que tanto o exigem
os pontífices, seja o réu crucificado. Ibis ad crucem.
Não sem um frêmito de
terror, acostou-Se o Divino Mestre ao instrumento do suplício. Era a cruz
resumido compêndio de sofrimento e de vergonha, mas Jesus a recebe com
submissão e religioso respeito, acolhe-a com alegria, com amor até; quem sabe
mesmo se a teria beijado com transportes, apertando-a contra o peito, como a um
ente querido e longamente acariciado.
Oprobriosa e infamante, não era a cruz tão somente
o martírio, mas ainda, e principalmente, a vontade de Deus, o instrumento da
nossa salvação, a fonte de todas as bênçãos, o cetro da Sua glória e
onipotência.
E começa a Via-dolorosa, longa, acidentada, juncada
de cardos e espinhos, que do Pretório vai ao Calvário, passando pela Porta
judiciária. Vai na frente, e a cavalo, o centurião romano; seguem-se-lhe os
condenados e a sua escolta; vêm após os auxiliares do algoz, com os
instrumentos da crucifixão; aos lados e atrás, fechando o lúgubre cortejo,
multidão imensa, homens e mulheres de todas as classes da sociedade.
Exausto da longa
caminhada, arquejante sob o peso da cruz, coroado de espinhos, malferido e
sangrento, vai Jesus acoimado de blasfemo, falso profeta, amotinador do povo.
E, todavia, esse é o caminho que todos havemos de palmilhar, bom ou mau grado
nosso.
A nossa cruz é a
penitência, a nossa cruz são os mandamentos divinos, a nossa cruz são os
deveres de estado, a nossa cruz é a luta contra as paixões más, são os males
que proliferam na vida, é o esforço da virtude, é o heroísmo da santidade. Como
homens e como cristãos, em bem ou em mal, assistidos da graça ou abandonados a
nós mesmos. Só nos fica a liberdade da escolha, e, com essa liberdade, a
salvação ou a condenação eterna.
* * *
Ao defrontar uma dessas vielas tão freqüentes nas
cidades orientais, num grupo de mulheres desoladas, cujos lamentos abafados mal
seriam ouvidos no ruidoso cortejo, eis se Lhe depara a Virgem Santíssima,
aparição dolorosa e todavia confortadora e desejada.
Essa Mãe, tão pura e tão perfeita que a não
sonharam os anjos do céu, Jesus a tinha criado especialmente para Si,
preservada da mancha original, revestida de pureza imaculada, espelho de Seu
próprio esplendor. Colocada nos confins da divindade, obra-prima das mãos do
Onipotente, amou a Jesus com amor sem igual, sobretudo depois que esse seio
virginal Lhe foi tabernáculo precioso e odorífero.
Déra-Lhe tudo: amor infinito, beleza infinita,
pureza infinita, graça infinita, glória infinita. Por Ela, e só por Ela,
esgotara a Sua Onipotência, e, sem embargo, não podia forrá-lA ao espetáculo
humilhante da Sua paixão, Havia de comunicar-Lhe ao coração sensibilíssimo a
mesma agonia que O prostrava a Ele, sob o peso da cruz.
É que ambos, nos decretos do Altíssimo, estavam
como identificados na missão regeneradora do homem. Em seu papel de
corredentora, cumpria que Maria Santíssima aceitasse o holocausto, oferecendo-O
igualmente à Justiça divina. Carne da Sua carne, era mister que ambos esses
corações se conformassem na comunhão dos sofrimentos, ambos generosos, ambos
vítimas de amor, ambos por Deus e pelo homem irmanados no mesmo sacrifício.
Olharam-se um instante,
olharam-se... e partiram. Ele, para o martírio do amor; Ela, para o amor do
martírio.
Ajudado do Cirineu, transpõe o Mestre a Porta
judiciária; vence penosamente a breve escarpa da colina. É o Calvário enfim, é
a consumação do sacrifício.
Terminados os preparativos, já suspensos da árvore
maldita os ladrões, que lhe seriam uma como guarda de honra, posto entre eles
como entre eles o mais celerado, coberto apenas de um pano que Lhe cinge os
rins, é Jesus levantado entre o céu e a
terra, como indigno da terra que o repele, rejeitado do céu que o abandona.
Como é belo na hediondez
das Suas chagas, quanto é digno de respeito na Sua fraqueza e abandono, esse
Deus eterno pendente de uma cruz, levantando para o céu olhos de paz e de
ternura.
E a cruz domina a cidade,
e o império romano, e o universo inteiro, sinal insondável da justiça e da
misericórdia de Deus, instrumento de castigo, penhor certíssimo de perdão.
O inferno deu um grito de
furor e de triunfo. Clamores ímpios, rugidos de cólera satisfeita saúdam a
vitória. Mas há aí também outros corações, outros olhos, outras mãos, outras
vozes que se levantam para a cruz, e essas vozes, e esses olhos, e esses
corações acolhem o sacrifício do Justo, oferecendo-lhe o tributo da piedade, do
amor e da adoração. É Maria Santíssima, é o evangelista do amor, são as santas
mulheres, são os discípulos e amigos de Jesus, são as almas puras, os corações
penitentes, os pequenos e os humildes saudando a aurora da Redenção.
E Jesus, num esforço supremo, vencendo as dores que
Lhe repercutem em todas as fibras do corpo, levanta os olhos para o céu, numa
súplica derradeira e eficacíssima: "Perdoae-lhes, meu Pai, porque não
sabem o que fazem".
Há já três horas sofre Jesus o horrendo martírio.
O sangue, já de todo esgotado, aumenta-Lhe a
palidez presaga; o rosto parece se Lhe vai alongando mais e mais; as linhas da
face se adelgaçam, cavando-as fundamente; os olhos injetados fixam no espaço um
ponto vago; os lábios se Lhe entreabrem, desmesurados, deixando ver, por entre
os dentes, uns últimos láivos de sangue.
E a morte se aproxima; a morte, a necessidade
suprema, fatal, inevitável; a morte, essa grande humilhação do corpo e da alma,
esse combate encarniçado em que a vida, assediada de todos os lados, se empenha
em luta desesperada; a morte, essa filha do pecado, que estende o cetro
implacável sobre todos os filhos de Adão, para reduzi-los ao pó da terra; a
morte se aproxima, medrosa, apavorada, indecisa, vacilante, como forçada pelo
Autor da Vida.
E Jesus, dando um grande brado, grito evidentemente
sobrenatural, não de homem, mas de um Deus que se despede, inclina a cabeça e
rende o último suspiro.
Tudo está consumado. Nos torreões do Templo, lá em
baixo, na cidade deicida, anunciam as trombetas a imolação do Cordeiro pascal.
Está fechada, para sempre fechada, a lei do terror.
Começa a lei da graça e do perdão...
Consummatum est.
Fonte: A Grande Guerra
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