CAPITULO IV
MEIO PARA RECONHECER QUE NÃO SE CONSENTIU
NA TENTAÇÃO.
Sem dificuldade convimos que, em
si mesma, a tentação não é um mal, e que só o consentimento faz o pecado. O que
produz embaraço e causa uma viva inquietação às almas que Deus põe nessa provação
e que conduz pela via penosa das tentações, é que elas quase sempre temem
ofender a Deus; e que, não havendo refletido bastante sobre esta matéria, não têm
princípios para se tranquilizarem: não sabem distinguir a tentação do consentimento.
Essa incerteza em que elas estão de haverem aderido à tentação lança-as numa
perplexidade que as faz sofrer muito, que lhes faz perder a paz interior, que
lhes debilita a confiança confrangendo-lhes o coração que as impede de ir a
Deus com liberdade, finalmente que as lança num desânimo extremo e lhes abate
inteiramente as forças. Algumas reflexões poderão esclarecer as vossas dúvidas sobre
este ponto, e pôr-vos em estado de decidir-vos.
·
Nós não somos inteiramente
senhores da nossa mente e do nosso coração. Não podemos impedir que certas ideias,
certos sentimentos nos ocupem. Às vezes mesmo eles nos ocupam de súbito tão
fortemente, que a alma é arrastada a seguir um pensamento, um projeto, sem o
perceber. A preocupação é tão grande, que não vemos nada, não ouvimos nada do
que se passa ao redor de nós, que não nos lembramos sequer do momento em que
essas ideias, esses sentimentos começaram a apoderar-se da nossa alma. Assim,
muitas vezes, nos achamos, sem reparar, em pensamentos e sentimentos contrários
à caridade e a outras virtudes, em projetos de vaidade, de orgulho e de amor-próprio.
Este estado dura mais ou menos,
conforme é mais ou menos forte a impressão dos objetos ou da imaginação, ou
conforme alguma circunstância impressionante tire mais cedo a alma dessa espécie
de encantamento. Então, por uma reflexão distinta, ela percebe aquilo que a
ocupa. Se, nesse momento em que é restituída a si mesma, ela condena essa ideia,
esse sentimento; se os desaprova e se se desvia deles tanto quanto pode, prudentemente
pode-se assegurar que em tudo o que precedeu ela não fez nenhum mal. A satisfação
que ela experimenta de se ver liberta deles é mais um sinal bastante seguro de que a vontade não tomou nenhuma parte neles
com reflexão.
Nessa preocupação, não houve
deliberação, não houve escolha da parte da vontade. Para que se ofenda a Deus, é preciso
que a vontade consinta deliberadamente em alguma coisa má, e que possa
renunciar-lhe. Não se acha nem uma coisa nem outra naquilo que precede a reflexão:
não pode, pois, haver ai pecado. Aliás, essa desaprovação tão pronta, desde a
primeira reflexão, assinala a boa disposição da alma, que não teria admitido
essas ideias, esses sentimentos, que não se teria ocupado deles, se os houvesse
conhecido com bastante reflexão para admiti-los ou rejeitar por escolha.
Devemo-nos, pois, comportar neste caso como se essas ideias e esses sentimentos
começassem no momento em que os percebemos com reflexão. Só neste ponto é que
deve começar o exame que se deve fazer; e, se então eles foram rejeitados, devemos
conservar-nos em paz.
Essa preocupação pode ser longa,
como muitas vezes sucede na oração, em que somos arrastados por uma distração
que absorve toda a atividade da alma. Esta circunstância não a torna voluntária
e deliberada. Não depende da vontade tornar essa distração mais curta, como não
depende o impedi-la de vir: não há da sua parte mais escolha numa coisa do que
noutra. Também não haverá mais mal; visto que a preocupação que chega subitamente
sem que a prevejamos não é um pecado. A longura do tempo que a experimentamos não
a torna culposa. Não é, pois, muito difícil decidir-se nessa circunstância.
(Livro Tratado das Tentações –
PADRE MICHEL da Companhia de Jesus)
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