CAPÍTULO VII
SOBRE AS TENTAÇÕES QUE NOS PERTURBAM
NO EXERCÍCIO DAS VIRTUDES.
NÃO SE DEVE DEIXAR A BOA OBRA, A
PRETEXTO DOS DEFEITOS OU DOS MAUS MOTIVOS QUE PODEM ENTREMEAR-SE NELA. CUMPRE
RENUNCIAR A UNS E PRESERVAR NA OUTRA.
Todos esses princípios servirão
para decidir e animar uma alma durante certas tentações que ela pode
experimentar na prática do bem. O inimigo da salvação não ousaria propor a
certas almas abandonarem o exercício das virtudes que levam à perfeição: mas põe
por obra um artifício para detê-las, e para retê-las numa mediocridade que as faz
cair na negligência. Todo o tempo que não é destinado aos exercícios de
piedade, ele as deixa tranquilas; porém, mal elas se aplicam a esses santos
exercícios, enche-lhes a imaginação de mil ideias que as atormentam.
Se há almas que pensam em levar
uma vida mais perfeita, e se não as pode ele desviar disso nem pelo respeito
humano, nem pela visão do constrangimento a que elas se obrigam e que ele
aumenta aos olhos delas, inspira-lhes então uma secreta vaidade na prática dos
seus deveres. Essa ideia segue-as em quase todas as suas ações. Parece-lhes que
elas só agem para atrair a vã estima dos homens, ou por uma vã complacência para
consigo mesmas.
Essas tentações afetam tão
fortemente certas pessoas, que elas ficam fatigadas, desconcertadas com elas.
Na ideia que as impressiona vivamente, de se constrangerem sem fruto e sem méritos
por essa falta de pureza de intenção, elas preferem resistir a Deus; afastam-se
dos exercícios de piedade; levam uma vida cheia de imperfeições e de faltas.
Pelo temor do combate, omitem o bem que Deus lhes inspira. Assim, só evitam uma
cilada caindo noutra.
Se a tentação sobrevém a ensejo
das inutilidades a que a pessoa se entrega, ou mesmo das ocupações perigosas
que não são do seu estado, não é duvidoso que ela deva renunciar a elas, para não
se expor ao perigo; menos verdade não é, porém, que o temor da tentação não
deve impedir uma alma de cumprir os seus deveres e de seguir o espírito de
Deus. Por si mesma, a tentação não é um mal; mas é ·um mal o faltar aos próprios deveres, àquilo
que Deus exige. Se a alma fiel se deixa guiar por essa aflição, e por esta razão
abandona aos seus exercícios de piedade ou o bem que pode fazer pelos sacrifícios
secretos, é infiel; priva-se dos socorros que a fariam progredir na perfeição; dá
ao inimigo um meio seguro para a fazer abandonar sucessivamente tudo o que para
ela é de obrigação. O inimigo fará uso desse império que ganha sobre ela, desse temor que lhe inspira e
que alimenta nela, para fazê-la negligenciar as práticas de Religião, os Sacramentos,
e tudo o que pode nutrir a piedade. Uma alma neste estado, sem ânimo e sem força,
uma alma que não ousa haurir na oração, na mortificação, os meios de se sustentar,
essa alma resistirá aos assaltos que o inimigo poderá desfechar-lhe?
Não· deve ela, pois, temer essas
espécies de tentações, visto não serem faltas, enquanto a vontade não as adotar,
enquanto nelas não consentir. As que são mais seguidas, deve ela combatê-las
pela confiança e pelo amor. As que só consistem em ideias passageiras, por mais
frequentes que sejam, deve ela, sem se inquietar com elas, desprezá-las, deixá-las
cair, propondo-se cumprir a vontade de Deus em todas as suas ações. Assim, sendo,
essas ideias não entremearão nisso a menor imperfeição. Farão, mesmo, um bem:
obrigarão essa alma a renovar mais, frequentemente, a pureza de intenção com
que deve agir. Assim ela tirará o bem do mal: fará servir à sua santificação
aquilo que era preparado para a sua perdição.
(Livro Tratado das Tentações –
PADRE MICHEL da Companhia de Jesus).
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