(Destaques
feito pelo blog).
Meu
caro Bernardo,
Acudiu-me
ao espírito ontem, quando voltava para casa depois de nossa conversa, que o mau
entendimento entre nós, a respeito do casamento, deve ser alargado, para se
tornar ainda maior do que realmente parece; e por isso, movido por um
escrúpulo, apresso-me em trazer, com meus protestos de amizade sincera, novos
elementos que tornem impossível entre nós uma conciliação naquele terreno.
Você
julga conhecer meu credo, e julga que ele é absurdo; mas na verdade, está longe
de imaginar o grau prodigioso em que é absurdo. Acho indispensável estabelecer
entre nós uma inconfundível separação. Muitas vezes, em casos semelhantes, não
levamos em conta o fenômeno ótico pelo qual o afastamento traz um acréscimo de
visibilidade.
O
casamento indissolúvel, para mim, repousa sobre um dado que é o centro de toda
a questão e que numa falsa retórica conciliatória, frequentemente contornamos,
para tornar nossa posição mais compreensível ao adversário. Agora eu descobri
que devo torna-la incompreensível para torna-la visível. Diga-me depois que eu
sou absurdo e fantástico, ou ao menos, com um conhecimento mais profundo da
real fisionomia de minha loucura.
Você
sabe que, para nós, o casamento é um sacramento, mas não avalia bem o que quer
isso dizer, e por isso todos os seus argumentos giram em torno da ideia de um
vinculo moral. O casamento cristão é, de fato, um vínculo moral, isto é, um
vinculo que não devemos romper; mas antes de tudo é um vínculo que não podemos
romper: e aí começa a história real de meus delírios. Você julga, apesar de
saber por alto que o casamento católico é um sacramento, que a Igreja quer
impedir a dissolução dos costumes, e por isso proíbe o divórcio. Ora, a Igreja
declara o divórcio impossível, e por isso conclui que sua procura trará
inevitavelmente para os homens uma
dissolução de costumes.
Avancemos
um pouco mais nos domínios de nossa loucura. Essas frases meio abstratas,
girando em torno do que devemos fazer ou podemos romper, ainda deixariam em seu
espírito algumas ilusões de uma linguagem semelhante entre nós. É
indispensável, entre pessoas que discutem com palavra sincera, conhecer em toda
a extensão a paisagem, real ou irreal, em que se desenrola os acontecimentos
que cada um descreve.
Quando
eu digo, por exemplo, que João e Maria se casaram na Igreja do Sagrado Coração,
eu não estou descrevendo o mesmo acontecimento a que você alude quando emprega
as mesmas palavras. Para você, o que se passou estritamente, foi o seguinte:
duas pessoas de sexo diferente compareceram diante de um sacerdote e, em
presença de uma centena de curiosos, trocaram palavras de compromisso mútuo,
selado com solenidade pelo símbolo da união das mãos e da troca dos anéis. Não
escaparam à sua sagacidade o benevolente contentamento do sacerdote, o
triunfante olhar da noiva, o complexo sentimento, misto de alegrai, alívio e
susto, nos semblantes dos pais, e o mais complexo ainda, misto de felicidade e
de embaraço no semblante do noivo. De
relance, você viu ainda esses pequenos detalhes – um bocejo, uma pétala caída e
pisada, um olhar espantada de criança – que cruzam de leve, em traços tênues e
fortuitos, os momentos mais trágicos. Tudo isso você viu, e em muito mais
pensou, e é a esse conjunto de cenas, fatos, esperanças e pressentimentos, que
alude quando me diz que João e Maria se casaram na Igreja do Sagrado Coração.
Ora,
eu creio com todas as forças da minha alma que aconteceram certas coisas que
você não viu, e que são justamente as mais importantes. Consideramos geralmente um juramento ou um pacto como uma
troca de compromissos morais que não deixa outra marca, em cada parte, senão um
pequeno traço, um imperceptível vinco na memória, isto é, um risco entre a alma
e o corpo, como esses que os carpinteiros
fazem nas juntas das peças para guardar o modo exato e único da esquadria bem feita. O juramento
é, pois, um risco, uma dobra, um vinco.
Um
vinculo. Imprime um sinal; marca a alma e o corpo. Mas o juramento sacramental
do matrimônio tem uma natureza mais total e mais profunda: os dois riscos em
cruz que o padre faz sobre os esposos, como bom discípulo de excelente
carpinteiro, marcam a justa posição de um entalhe definitivo que deverá retomar
seu encaixe único cada vez que, por contingência da vida e interposição do
mundo, se afastarem as duas peças. Não é somente na lousa da memória,
enquadrada entre a alma e o corpo, que a promessa ficou consignada. Foi de alto
a baixo, da esquerda à direita, em altura, largura e profundidade, que a
esquadria sacramental marcou os dois corpos ajoelhados. Os anjos estavam
presentes tomando nota das palavras de consentimento com que cada cônjuge
ministrava ao outro o sacramento; e quando um anjo toma em nota é para sempre.
E
então – ouve, ó amigo, as palavras estranhas de meu credo – a esposa nasceu naquele instante, nova,
nova na alma e no corpo, no espírito e na carne, tirada de uma costela do noivo
adormecido. Houve um nascimento, único no gênero, saído do flanco de um homem
prostrado em sonolência de amor e confiança; e uma nova mulher, irmã de Cristo
e filha de Maria, nasceu para ser esposa e mãe. Dois na mesma carne quer dizer
entalhe, junção, encaixe; mas quer dizer também desdobramento e separação.
O
juramento matrimonial marca o ser, funde as almas e prepara o cadinho em que os
sangues serão fundidos; mas, independentemente, dos filhos gerados, os dois
corpos já estão atravessados, lado a lado, por uma trave. O juramento matrimonial,
pela força do espírito, marca os corpos, corporalmente, concretamente, como se
a mulher tivesse sido arrancada, ali, à vista de todos da costela do homem
adormecido. “Da costela, sim, porque próxima do coração – para ser
ternamente amada; costela, em baixo do braço, para ser corajosamente
defendida.”
E
aí está em breves traços, ò amigo, o fantástico absurdo em que eu creio. João e
Maria são agora diferentes até os ossos. Você objetará que a diferença ocorrida
não é visível nem apreciável com todos os recursos da química. Uma analise de
sangue, realmente, feita logo depois da cerimônia, não revelará nenhuma alteração
sensível nas espécies. Não discutirei no momento esse detalhe; ao contrário,
fiel ao meu propósito de produzir entre nós uma salutar distancia, para que
você possa apreciar a verdadeira extensão de nossa loucura, eu lhe direi que
somos ainda sete vezes mais loucos do que pensa, porque cremos em sete
mistérios sacramentais.
O
importante a assinalar na questão do casamento é a convicção que temos de seu
caráter ontológico, e não puramente moral. O importante, se você quer apreender
nosso pensamento, é fixar a atenção sobre a história da costela, e não apenas
sobre as consequências sociais do enlace. E eu o aconselharia a ler as páginas
mais desvairadas da Sagrada Escritura, onde o homem mora três dias no ventre de
uma baleia e um outro faz parar o sol;
onde o profeta vê estranhos seres com quatro faces, quatro asas e
rutilantes pés de bronze polido; onde o evangelista vê surgir do mar um monstro
com sete cabeças e dez cornos, tendo escritos nas testas nomes blasfematórios.
E
então você se convencerá que nós somos setenta vezes mais loucos do que
imaginava. Mas, por outro lado, deverá reconhecer que milhares de pessoas, tão
razoáveis e mais estimáveis do que eu, durante milhares de anos, creram o que
era incrível, o que vem a ser, segundo Santo Agostinho, e em linguagem
matemática, incrível ao quadrado. E creram sem ter visto o mais inofensivo dos
monstros, o que se torna, decididamente, um inexplicável desvario, ou incrível
ao cubo. E resulta disso tudo, num estranho paradoxo, que os homens
racionalistas como você, são os únicos a desfrutar o privilégio dos profetas,
isto é, o privilégio de ver a figura externa da Igreja, e de nos ver e nos
ouvir, nós os fantásticos, incríveis e monstruosos inventores de monstros. E cá
estou eu, meu velho, um banal e vulgaríssimo espécime para servir de espetáculo
e de escândalo à geométrica razão. Olhando-me, a mim ou qualquer beata que se
levanta do confessionário, você verá um monstro.
Mas,
voltando à questão do casamento, eu quero lhe mostrar uma coisa que escapou às
suas cogitações e que torna seu mundo de círculos e triângulos ainda mais doido
do que o meu mundo cheio de baleias habitáveis, de candelabros animados e de
serpentes persuasivas. Leia o que Chesterton disse sobre o mistério, e que transcrevi
páginas atrás, e verá que, aplicada ao juramento, e mais particularmente ao
matrimônio, a ideia do mistério, revela, por contraste, a terrível retração, o
mesquinho encolhimento, desse universo racional em que você tenta em vão se
instalar. Você troca o nosso largo e amplo delírio por um pequeno delírio; o
desvario pela incoerência.
Disse
atrás que o casamento imprime um sinal, um vinco, um vinculo. Suponhamos agora
que assim não seja, e que o casal, ao sair da igreja, leve os mesmos corpos,
apenas enfeitados de bons propósitos e eufóricos sentimentos. Suponhamos que a
esposa continue a ser tão diferente do esposo, tão alheia e tão autônoma,
substancialmente, como ao entrar pelo braço do pai, arrastando um longo véu que
deixa para trás uma inútil brancura. Suponhamos que a união conjugal, em suma,
não tenha conteúdo ontológico. E agora consideremos uma família (uma casa de
família grande, como a nossa, cheia de filhos, tias e avós) sob o ponto de
vista do marido. Olhemos essa casa, essa família, essa gente, com o olho
especulativo e racional do marido. Quase todas as pessoas estão ligadas por
vinculo concreto. As tias, os filhos, o avô, estão ligados por uma conspiração
cromossômica que transparece nas faces e nos gestos; o mesmo sangue corre em
todas as veias: a única pessoa que não faz parte da família é a esposa. O
centro da família não pertence à família. A dona de casa não está em sua casa:
é uma intrusa. É a única pessoa, além das empregadas, que não está ligada ao
marido senão por um contrato moral. O triângulo básico da família, pai, mãe e
filho, não é igualmente concreto e corpóreo em todos os seus lados; não o é
justamente na base.
A
tia é uma parenta, ainda que seja uma parenta pobre; mas a esposa não é. A tia
está ligada à família por fio; a esposa não está. A tia é indissoluvelmente tia
e nunca passou pelo espírito do mais audacioso filósofo que uma tia pudesse
perder seus títulos; uma avó, um filho, são indissoluvelmente avó e filho. A
esposa não: o centro mesmo da família, o pilar, a base, a dona de casa, é uma
pessoa que, de passagem, faz o favor de emprestar seu sangue, seu ventre e seu
leite.
Tomando
a perspectiva da esposa teríamos outra metade do quadro onde o corpo estranho é
o pai da família, e eu concluo que, em toda a família os únicos sobre os quais
paira um duvidoso parentesco são os esposos. E concluo que esse mundo racional
e perfeito que você criou é pequeno demais. Na melhor das hipóteses, quando
vocês falam em horizontes rasgados e em liberdades, eu vejo uma prancha
oscilante, um passadiço exíguo demais para um casal de braço dado. Mas na
verdade, o que me parece esse mundo, em que só cabe um de cada vez, é um vidro
de farmácia onde se expõe um feto. E eu prefiro o meu, fantástico, cheio de
monstros e de anjos, onde cabe à vontade este abraço de amigo que aqui lhe
deixo.
Sinceramente
seu G.
(Extraído
do livro Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção).
Nenhum comentário:
Postar um comentário