segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Carta Expressa sobre o Vinculo Conjugal





(Destaques feito pelo blog).


Meu caro Bernardo,

Acudiu-me ao espírito ontem, quando voltava para casa depois de nossa conversa, que o mau entendimento entre nós, a respeito do casamento, deve ser alargado, para se tornar ainda maior do que realmente parece; e por isso, movido por um escrúpulo, apresso-me em trazer, com meus protestos de amizade sincera, novos elementos que tornem impossível entre nós uma conciliação naquele terreno.

Você julga conhecer meu credo, e julga que ele é absurdo; mas na verdade, está longe de imaginar o grau prodigioso em que é absurdo. Acho indispensável estabelecer entre nós uma inconfundível separação. Muitas vezes, em casos semelhantes, não levamos em conta o fenômeno ótico pelo qual o afastamento traz um acréscimo de visibilidade.

O casamento indissolúvel, para mim, repousa sobre um dado que é o centro de toda a questão e que numa falsa retórica conciliatória, frequentemente contornamos, para tornar nossa posição mais compreensível ao adversário. Agora eu descobri que devo torna-la incompreensível para torna-la visível. Diga-me depois que eu sou absurdo e fantástico, ou ao menos, com um conhecimento mais profundo da real fisionomia de minha loucura.

Você sabe que, para nós, o casamento é um sacramento, mas não avalia bem o que quer isso dizer, e por isso todos os seus argumentos giram em torno da ideia de um vinculo moral. O casamento cristão é, de fato, um vínculo moral, isto é, um vinculo que não devemos romper; mas antes de tudo é um vínculo que não podemos romper: e aí começa a história real de meus delírios. Você julga, apesar de saber por alto que o casamento católico é um sacramento, que a Igreja quer impedir a dissolução dos costumes, e por isso proíbe o divórcio. Ora, a Igreja declara o divórcio impossível, e por isso conclui que sua procura trará inevitavelmente para os homens  uma dissolução de costumes.

Avancemos um pouco mais nos domínios de nossa loucura. Essas frases meio abstratas, girando em torno do que devemos fazer ou podemos romper, ainda deixariam em seu espírito algumas ilusões de uma linguagem semelhante entre nós. É indispensável, entre pessoas que discutem com palavra sincera, conhecer em toda a extensão a paisagem, real ou irreal, em que se desenrola os acontecimentos que cada um descreve.

Quando eu digo, por exemplo, que João e Maria se casaram na Igreja do Sagrado Coração, eu não estou descrevendo o mesmo acontecimento a que você alude quando emprega as mesmas palavras. Para você, o que se passou estritamente, foi o seguinte: duas pessoas de sexo diferente compareceram diante de um sacerdote e, em presença de uma centena de curiosos, trocaram palavras de compromisso mútuo, selado com solenidade pelo símbolo da união das mãos e da troca dos anéis. Não escaparam à sua sagacidade o benevolente contentamento do sacerdote, o triunfante olhar da noiva, o complexo sentimento, misto de alegrai, alívio e susto, nos semblantes dos pais, e o mais complexo ainda, misto de felicidade e de embaraço no semblante do noivo.  De relance, você viu ainda esses pequenos detalhes – um bocejo, uma pétala caída e pisada, um olhar espantada de criança – que cruzam de leve, em traços tênues e fortuitos, os momentos mais trágicos. Tudo isso você viu, e em muito mais pensou, e é a esse conjunto de cenas, fatos, esperanças e pressentimentos, que alude quando me diz que João e Maria se casaram na Igreja do Sagrado Coração.

Ora, eu creio com todas as forças da minha alma que aconteceram certas coisas que você não viu, e que são justamente as mais importantes. Consideramos  geralmente um juramento ou um pacto como uma troca de compromissos morais que não deixa outra marca, em cada parte, senão um pequeno traço, um imperceptível vinco na memória, isto é, um risco entre a alma e o corpo, como esses que os carpinteiros  fazem nas juntas das peças para guardar o modo exato  e único da esquadria bem feita. O juramento é, pois, um risco, uma dobra, um vinco.

Um vinculo. Imprime um sinal; marca a alma e o corpo. Mas o juramento sacramental do matrimônio tem uma natureza mais total e mais profunda: os dois riscos em cruz que o padre faz sobre os esposos, como bom discípulo de excelente carpinteiro, marcam a justa posição de um entalhe definitivo que deverá retomar seu encaixe único cada vez que, por contingência da vida e interposição do mundo, se afastarem as duas peças. Não é somente na lousa da memória, enquadrada entre a alma e o corpo, que a promessa ficou consignada. Foi de alto a baixo, da esquerda à direita, em altura, largura e profundidade, que a esquadria sacramental marcou os dois corpos ajoelhados. Os anjos estavam presentes tomando nota das palavras de consentimento com que cada cônjuge ministrava ao outro o sacramento; e quando um anjo toma em nota é para sempre.

E então – ouve, ó amigo, as palavras estranhas de meu credo – a esposa nasceu naquele instante, nova, nova na alma e no corpo, no espírito e na carne, tirada de uma costela do noivo adormecido. Houve um nascimento, único no gênero, saído do flanco de um homem prostrado em sonolência de amor e confiança; e uma nova mulher, irmã de Cristo e filha de Maria, nasceu para ser esposa e mãe. Dois na mesma carne quer dizer entalhe, junção, encaixe; mas quer dizer também desdobramento e separação.

O juramento matrimonial marca o ser, funde as almas e prepara o cadinho em que os sangues serão fundidos; mas, independentemente, dos filhos gerados, os dois corpos já estão atravessados, lado a lado, por uma trave. O juramento matrimonial, pela força do espírito, marca os corpos, corporalmente, concretamente, como se a mulher tivesse sido arrancada, ali, à vista de todos da costela do homem adormecido. “Da costela, sim, porque próxima do coração – para ser ternamente amada; costela, em baixo do braço, para ser corajosamente defendida.”

E aí está em breves traços, ò amigo, o fantástico absurdo em que eu creio. João e Maria são agora diferentes até os ossos. Você objetará que a diferença ocorrida não é visível nem apreciável com todos os recursos da química. Uma analise de sangue, realmente, feita logo depois da cerimônia, não revelará nenhuma alteração sensível nas espécies. Não discutirei no momento esse detalhe; ao contrário, fiel ao meu propósito de produzir entre nós uma salutar distancia, para que você possa apreciar a verdadeira extensão de nossa loucura, eu lhe direi que somos ainda sete vezes mais loucos do que pensa, porque cremos em sete mistérios sacramentais.

O importante a assinalar na questão do casamento é a convicção que temos de seu caráter ontológico, e não puramente moral. O importante, se você quer apreender nosso pensamento, é fixar a atenção sobre a história da costela, e não apenas sobre as consequências sociais do enlace. E eu o aconselharia a ler as páginas mais desvairadas da Sagrada Escritura, onde o homem mora três dias no ventre de uma baleia e um outro faz parar o sol;  onde o profeta vê estranhos seres com quatro faces, quatro asas e rutilantes pés de bronze polido; onde o evangelista vê surgir do mar um monstro com sete cabeças e dez cornos, tendo escritos nas testas nomes blasfematórios.

E então você se convencerá que nós somos setenta vezes mais loucos do que imaginava. Mas, por outro lado, deverá reconhecer que milhares de pessoas, tão razoáveis e mais estimáveis do que eu, durante milhares de anos, creram o que era incrível, o que vem a ser, segundo Santo Agostinho, e em linguagem matemática, incrível ao quadrado. E creram sem ter visto o mais inofensivo dos monstros, o que se torna, decididamente, um inexplicável desvario, ou incrível ao cubo. E resulta disso tudo, num estranho paradoxo, que os homens racionalistas como você, são os únicos a desfrutar o privilégio dos profetas, isto é, o privilégio de ver a figura externa da Igreja, e de nos ver e nos ouvir, nós os fantásticos, incríveis e monstruosos inventores de monstros. E cá estou eu, meu velho, um banal e vulgaríssimo espécime para servir de espetáculo e de escândalo à geométrica razão. Olhando-me, a mim ou qualquer beata que se levanta do confessionário, você verá um monstro.

Mas, voltando à questão do casamento, eu quero lhe mostrar uma coisa que escapou às suas cogitações e que torna seu mundo de círculos e triângulos ainda mais doido do que o meu mundo cheio de baleias habitáveis, de candelabros animados e de serpentes persuasivas. Leia o que Chesterton disse sobre o mistério, e que transcrevi páginas atrás, e verá que, aplicada ao juramento, e mais particularmente ao matrimônio, a ideia do mistério, revela, por contraste, a terrível retração, o mesquinho encolhimento, desse universo racional em que você tenta em vão se instalar. Você troca o nosso largo e amplo delírio por um pequeno delírio; o desvario pela incoerência.

Disse atrás que o casamento imprime um sinal, um vinco, um vinculo. Suponhamos agora que assim não seja, e que o casal, ao sair da igreja, leve os mesmos corpos, apenas enfeitados de bons propósitos e eufóricos sentimentos. Suponhamos que a esposa continue a ser tão diferente do esposo, tão alheia e tão autônoma, substancialmente, como ao entrar pelo braço do pai, arrastando um longo véu que deixa para trás uma inútil brancura. Suponhamos que a união conjugal, em suma, não tenha conteúdo ontológico. E agora consideremos uma família (uma casa de família grande, como a nossa, cheia de filhos, tias e avós) sob o ponto de vista do marido. Olhemos essa casa, essa família, essa gente, com o olho especulativo e racional do marido. Quase todas as pessoas estão ligadas por vinculo concreto. As tias, os filhos, o avô, estão ligados por uma conspiração cromossômica que transparece nas faces e nos gestos; o mesmo sangue corre em todas as veias: a única pessoa que não faz parte da família é a esposa. O centro da família não pertence à família. A dona de casa não está em sua casa: é uma intrusa. É a única pessoa, além das empregadas, que não está ligada ao marido senão por um contrato moral. O triângulo básico da família, pai, mãe e filho, não é igualmente concreto e corpóreo em todos os seus lados; não o é justamente na base.

A tia é uma parenta, ainda que seja uma parenta pobre; mas a esposa não é. A tia está ligada à família por fio; a esposa não está. A tia é indissoluvelmente tia e nunca passou pelo espírito do mais audacioso filósofo que uma tia pudesse perder seus títulos; uma avó, um filho, são indissoluvelmente avó e filho. A esposa não: o centro mesmo da família, o pilar, a base, a dona de casa, é uma pessoa que, de passagem, faz o favor de emprestar seu sangue, seu ventre e seu leite.

Tomando a perspectiva da esposa teríamos outra metade do quadro onde o corpo estranho é o pai da família, e eu concluo que, em toda a família os únicos sobre os quais paira um duvidoso parentesco são os esposos. E concluo que esse mundo racional e perfeito que você criou é pequeno demais. Na melhor das hipóteses, quando vocês falam em horizontes rasgados e em liberdades, eu vejo uma prancha oscilante, um passadiço exíguo demais para um casal de braço dado. Mas na verdade, o que me parece esse mundo, em que só cabe um de cada vez, é um vidro de farmácia onde se expõe um feto. E eu prefiro o meu, fantástico, cheio de monstros e de anjos, onde cabe à vontade este abraço de amigo que aqui lhe deixo.

Sinceramente seu G.


(Extraído do livro Três Alqueires e uma Vaca, de Gustavo Corção).

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