Começa agora a publicação dos capítulos da segunda parte do livro 'A Subida do Calvário' do Pe. Louis Perroy, SJ. Afim de meditarmos passo a passo a paixão de Cristo, nos mas íntimos detalhes.
A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
I. DOS SENTIMENTOS DO CRISTO
NO MOMENTO DE ENTRAR NA SUA PAIXÃO:
A SUA ALTIVEZ.
Parece que Jesus tinha avivado em si dois
sentimentos nos dias que precederam a Sua dolorosa Paixão.
Um grande sentimento da Sua dignidade pessoal em
primeiro lugar, e a seguir uma profunda e vivíssima ternura com respeito
àqueles que vai deixar.
E, na realidade, a primeira coisa com que se
preocupa – e já de longa data – é com que os Seus padecimentos não sejam um
objeto de escândalo.
Parecia tão estranho que aquele enviado de Deus,
aquele Messias, fosse entregue aos gentios, cuspido, espezinhado, coberto de
feridas, coroado de Sangue e, afinal, crucificado!
E então Jesus prepara os Seus discípulos para esse
terrível destino, e prepara-os por Suas palavras, por Suas alusões, algumas
vezes por Suas repreensões.
Absit, Domine, exclama Pedro; não, Senhor, não
pode ser assim: Vós flagelado, Vós crucificado!
Em verdade, em verdade, durus est hic sermo, quis
potest audire? Esta palavra excede os limites, não pode isto ouvir-se e
suportar-se.
– Assim será, porém, Pedro... e tu mesmo, mais
tarde, quando tiveres envelhecido, quando tiveres compreendido, deixar-te-ás
conduzir à mesma Cruz, às mesmas ignomínias.
E esta palavra era oculta para eles – para Pedro
como para os outros –, eles não compreendiam.
Nós não podemos compreender por nós mesmos a
terrível necessidade dos Calvários íntimos, públicos ou pessoais.
Oportuit Christum pati (Convinha ao Cristo o
padecer). Era preciso.
Deus emprega às vezes toda a nossa vida em nos
fazer compreender este doloroso Oportet, mas a ele temos de chegar se quisermos
ser salvos.
Até lá, Jesus quer poupar os Seus fiéis amigos. Previne-os então, desenrola previamente as páginas sangrentas do livro.
Sabe que se vai tornar o ente repugnante que fará desviar os olhos e provocar náuseas... O verme que se torce no Sangue e na lama... O homem das dores... Mas por trás desse homem, desse verme, daquela Face que mete dó... Há, no entanto... O Deus.
Não o esqueçais, meus caros filhinhos...
Por isto que Ele se vai fazer tão miserável, sair
da Sua condição e da Sua situação, descer a fundo no opróbrio, não quisera
fossem esquecer o que Ele é, de onde vem, com Quem sempre permanece.
– Um momento, e já não me vereis, diz melancolicamente. Mas, ficai sabendo:
De Deus venho, a Ele torno, estou com Ele; vedes que Eu vos falo claro para que compreendais.
– Pois sim, prosseguem os Apóstolos. Falais de
fato claramente. Agora cremos que sois de Deus.
– Credes! Responde Jesus... e a hora vem, já veio,
em que todos vós ides fugir e me deixareis só.
Dessa forma, é um misto de sentimentos diversos em
que se afirma a Sua Divindade, no momento mesmo em que ela se vai eclipsar
dolorosamente.
Esta afirmação daquilo que somos, assim pelo
sangue como pela condição, em face daqueles que nos vão calcar aos pés, é
natural a todo ente superior.
A abdicação da própria dignidade pessoal é a última que a gente se resolve a assinar.
Naquela lúgubre cena histórica que se desenrola em
Varennes, no início da paixão da Realeza Francesa, quando a família real é
brutalmente acuada pela turba chocarreira a um canto da tenda ordinária de um
vendeiro, e quando Luiz XVI entra ridiculamente metido no seu disfarce de
criado, Maria Antonieta, que tinha sangue, tem como que um sobressalto de
indignação régia: o rubor assoma-lhe ao rosto em vendo o cenário que a rodeia,
e aos que falam familiarmente demais ao príncipe, ela diz vivamente: “Mas
afinal é o Rei!” Ai! Ela dirá também mais tarde: “Nós bem que queremos um
Calvário, contanto que elevado!”.
Às vezes não se tem sequer a irrisória consolação
de subir no sofrimento. Há que descer aos próprios olhos e aos olhos de todos.
Jesus, que sabe que esta especial humilhação Lhe
será reservada, mesmo aceitando-a de antemão, não quisera perder toda
consideração aos olhos dos Seus, e nos Seus profundos abaixamentos deseja que a
nossa piedade advertida a nós próprios nos repita amiúde: Ecce Rex vester! É
sempre o vosso Rei!
Assim, não nos é proibido sofrer ao nos vermos
diminuídos. Assim, há uma legítima reivindicação da própria dignidade.
Tudo isto me consola, ó meu Deus, mas como é assustador pensar que a gente poderá às vezes sofrer essa desconsideração e esse desprezo dos nossos, para calcar ainda mais nas Vossas a própria vida e morte: Fiat.
Cumpre, pois, entrar na Paixão baixando a cabeça,
depois de a haver erguido um instante para mostrar que podia cingir uma coroa: Fiat.
Breve não terá Jesus outro rasgo senão este; outra
palavra senão este termo tão breve e tão cheio.
Terá perdido a Sua altivez, e a Sua força estará
por terra.
(“A Subida do Calvário”, do padre Louis Perroy,
SJ)
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