A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
II. A TERNURA DE CRISTO.
O segundo sentimento
que ocupa o Coração do Cristo é o cuidado real de mostrar aos Seus a Sua viva e
profunda ternura.
Importa ver, ouvir, gostar as Suas derradeiras e intimas conversações, naquela noite suprema do Cenáculo. Há muito escolheu Ele o lugar.
Ainda nesta escolha se
afirma a Sua Divindade.
– Ide, diz a Pedro e a
João, encontrareis à porta da cidade um homem que carrega um cântaro d’água
(era presumivelmente a porta mais próxima do bairro de Sião e que levava à
Fonte da Virgem onde manava a água mais pura de Jerusalém): seguireis esse
homem, continua Jesus, ele entrará na casa de um pai de família que tem uma
sala alta à minha disposição, está toda mobiliada. É aí...
Assim, Ele viu tudo, a
porta, o homem, o cântaro e até a mesa posta e os leitos que a circundam.
Dessa forma, tinha Ele amigos secretos, em cuja casa podia entrar a qualquer hora.
Dessa forma, tinha Ele amigos secretos, em cuja casa podia entrar a qualquer hora.
Tem-nos ainda, contra os quais saca quando Lhe apraz. São os Seus bancos particulares
onde se mantém em reserva a vida e a subsistência dos Seus pobres e dos eleitos
sofredores.
Portanto, naquela sala
estão todos reunidos, os Doze.
Faz-se primeiro o essencial, o repasto espiritual: estão todos de pé à volta da mesa, empunhando um bordão, com as vestes arregaçadas, os rins cingidos, as sandálias nos pés: o traje dos viajantes. O cordeiro está no prato, no meio. Faz-se pressa em cumprir a cerimônia. Come-se a carne com as alfaces amargas, e isto se faz em silêncio.
Após o que, podem os Apóstolos crer que está tudo acabado. Mais não se fizera nos outros anos. Poderão pois retirar-se depois de tomarem juntos a refeição de costume que seguia a ceia pascal.
Entretanto, Jesus
parece preparar outra coisa mais...
Apenas começou Ele a refeição noturna, se levanta, deixa o manto e a veste branca, conservando só a túnica vermelha, toma a toalha, faz como um criado, cinge-a em torno aos rins, derrama água numa bacia e põe-se a querer lavar os pés a cada um dos Apóstolos.
Tudo é surpreendente
nessa ação. Nunca o Mestre dera semelhante prova de deferência. Ele pôr-se de
joelhos e lavar os pés dos discípulos!...
Compreende-se o movimento de Pedro. Aquilo era contra a dignidade do Mestre e do Deus.
Sim... mas agora é a
hora da ternura.
Deixai, mais tarde compreendereis e então fareis como Eu estou fazendo!
Admirável dispensação
da luz divina: repito, nós não podemos tudo compreender a um tempo... Se Deus
não fizesse algo que nos transcenda e nos admire, agiria como homem e não como
Deus. Lava Ele, pois, os pés, enxugando-os... em meio à comoção geral.
Eis porém que se põem novamente à mesa; há leitos para se estenderem. Jesus está no meio. João está no mesmo leito que Ele, de tal sorte que basta inclinar-se para trás para apoiar a cabeça no peito do Mestre. Pedro está no leito do lado. Judas não devia estar muito longe, pois daí a pouco Jesus lhe falará sem que os outros ouçam e poderá estender-lhe um pedaço de pão.
Eis porém que se põem novamente à mesa; há leitos para se estenderem. Jesus está no meio. João está no mesmo leito que Ele, de tal sorte que basta inclinar-se para trás para apoiar a cabeça no peito do Mestre. Pedro está no leito do lado. Judas não devia estar muito longe, pois daí a pouco Jesus lhe falará sem que os outros ouçam e poderá estender-lhe um pedaço de pão.
Entrementes, come-se, bebe-se... guarda-se silêncio; os corações estão cheios de aflição, os olhares fixam-se comovidos no semblante de Jesus... Ele baixa os olhos, parece mais triste que de costume; por fim diz com um suspiro:
– Como Eu desejava
comer esta Páscoa convosco... antes de padecer!
E pouco depois:
– Em verdade é a última...
Já não comerei
convosco, já não beberei até que venha o Reino de Deus... isto é, até que Eu
haja chegado à glória eterna.
E isto dizendo, faz
circular uma taça cheia de vinho, como era de uso fazer no começo das refeições:
cada um molha nela os lábios.
Depois recomeça o
silêncio.
Jesus tem um peso no
Coração: sente-se, vê-se, Ele olha em torno de si, quer falar, cala-se...
oprime-o o doloroso segredo. Afinal perturba-se visivelmente; altera-se-Lhe o
semblante, o segredo estala: – Em verdade, diz como acabrunhado, há aqui um que
me trairá!
Um! – Ele come comigo,
prossegue o Salvador... põe comigo a mão no prato.
Persiste ainda o uso no
Oriente de, nas refeições, tomar cada conviva no prato colocado no meio a
porção que lhe convém; todos põem pois a mão no mesmo prato.
– Um dos Doze, repete
Jesus...
Os Apóstolos ficam consternados... de todo lado vozes ansiosas se elevam:
– Senhor... sou eu?
No meio das interrogações confusas, Judas faz também a mesma pergunta:
– Mestre, serei eu?
– Tu o disseste, responde Jesus em voz baixa... és tu!
Ninguém ouviu esta
palavra. Portanto o traidor é conhecido, mas por delicadeza não é revelado.
E é em presença dele
que Jesus vai realizar o Seu prodígio de amor... o Seu excesso de ternura: Cum
dilexisset suos, in finem dilexit eos – Tendo amado os Seus, amou-os até o
fim (Jo 13, 1).
Judas jurou trai-lO... Os trinta dinheiros já lhe estão na bolsa. O ajuste está de pé.
Jesus sabe que dentro
de algumas horas O vão entregar... haverá paus, armas, cordas, será de noite,
ao clarão dos archotes... haverá sobretudo um traidor que O virá prender por um
beijo.
Ora, antes de ser
entregue, quer-se Ele próprio entregar... toma a dianteira.
E uma palavra Sua vai
lançá-lO de algum modo, de pé e mãos atadas, à humanidade até à consumação dos
tempos... e é assim que a Sua ternura triunfará da malícia humana.
A refeição tocava o seu
termo. Havia diante de Jesus um pão ázimo intacto. Tomou-o como se o quisesse
comer, partiu-o em vários pedaços, em doze provavelmente, e súbito diz:
– Tomai, comei.
Isto é o meu Corpo que vai ser dilacerado, partido, feito em pedaços como este pão, e entregue por Vós.
Tomai, ei-lo, Eu vo-lo
dou, Eu vo-lo entrego.
E faz circular o prato
onde havia deposto os doze fragmentos. Cada qual tomou um, Judas como os
demais.
– Fareis isto em
memória de Mim, acrescentou Jesus.
Foi assim que Ele se
entregou antes do beijo do traidor.
Quando Jesus se
entrega, o faz deveras. Nunca se tornou a tomar depois, e não se tornará a
tomar nunca. Este caráter, esta fisionomia de entregue atravessaram os séculos,
é ainda assim que Ele está no meio de nós e nós não pomos reparo... não acusemos a indiferença aparente dos
discípulos durante aquela noite em que eles fugirão: a nossa é tão grande e
menos desculpável.
Entretanto a ceia
terminava. Findava na estupefação e no silêncio. Restava uma última cerimônia
antes do hino final: passava-se de ordinário uma taça cheia de vinho, como se
fizera no começo, e bebia-se dando graças.
Jesus encheu a taça, rendeu graças, mas acrescentou ao mesmo tempo: – Bebei todos, é meu Sangue... o Sangue da nova aliança que Eu contraio com a humanidade... o Sangue que vai ser derramado amanhã pela remissão dos pecados.
E a taça circulou por
toda a mesa.
Jesus parece acompanhar o Seu Sangue que passa assim de lábios em lábios... Quando chega ao de Judas... Ele não se pode conter... a tortura íntima é por demais viva: – Eis, diz de repente, a mão do traidor está comigo à mesa. E ajuntou após um silêncio: – Ai daquele que me trai!...
De novo vozes confusas e interrogações misturaram-se na sala; foi nesse momento que João inclinou a cabeça para trás, como para consolar o Senhor, e perguntou-Lhe afetuosamente: Este doloroso anátema sacudiu o espanto entorpecido dos Apóstolos.
– Mestre, quem é?...
Deus não recusa nada aos desejos da inocência.
– Aquele a quem Eu
apresentar um pedaço de pão molhado nesse prato, diz Ele baixinho, ao ouvido do
predileto.
E estendeu um bocado de
pão umedecido, como sinal de amizade, a Judas.
Judas tomou-o, e o
coração tornou-se-lhe definitivamente a presa do demônio.
Levantou-se de chofre
da mesa; por uma última delicadeza, Jesus, que o vê sair, diz-lhe em voz mais
alta:
– O que tens a fazer, faça-o logo.
Ele sai, era noite já
profunda. Jesus seguiu-o com um derradeiro olhar. Que olhar!
E, quando a porta se
fechou atrás do traidor, um suspiro se Lhe exalou do peito aliviado;
iluminou-se-Lhe o rosto.
– Agora, diz, a glória
de Deus vai refulgir sobre o Filho do Homem!
A contar de Judas... a traição pelo ente amado tem sido sempre a tortura
mais temível ao coração que ama: não a poupa Deus aos que quer mais semelhantes
a Seu Filho.
É esse ainda um dos caracteres
reservados da Paixão: quem pode tê-lo está de posse de um penhor bem consolador
de predestinação.
(“A Subida do
Calvário”, do padre Louis Perroy, SJ)
Nenhum comentário:
Postar um comentário