segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A Subida do Calvário 2º parte - VII. O BEIJO E O ABANDONO.


SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO

VII. O BEIJO E O ABANDONO.



Eis o que faz Jesus: não só recebe humildemente os conselhos fortalecedores do Anjo, mas os põe imediatamente em prática.

Levanta-se... ruídos de passos fazem-se ouvir... tilintar de armas, murmúrios abafados. Clarões avermelhados e indecisos de archotes que caminham perturbam a sombra e o silêncio opressivo daqueles lugares.

O Mestre aproxima-se dos seus, mal despertos ainda do pesado sono, e diz-lhes tristemente: “Agora podeis dormir, se quiserdes”; depois, de repente, com uma decisão e uma energia que contrastam com a fraqueza e as angústias de há pouco, acrescenta: “Vamos, levantai-vos, é o momento. Eis que vêm prender o Filho do homem; o que me trai se acerca”.

O horto e a estrada que o atravessa são subitamente invadidos.

Um homem destacou-se um pouco para a frente do grupo de soldados e criados.

Era Judas.

Qual seria o seu estado de espírito? Quais as suas impressões? Cinismo? Hipocrisia? Temor?

Teria ele querido, como dizem pios comentadores, simular aos olhos dos Apóstolos que vinha a prevenir o Mestre do perigo que O cercava e parecer insinuar-Lhe, sob a capa de um beijo apressado, um aviso salutar?... Pensava ele que Jesus se livraria facilmente, como dantes? Pode-se duvidar, porque ao contrário ele parece ter querido prever as ‘astúcias’ e as ‘habilidades’ do ‘fazedor de milagres’.

Recomendou que guardassem, cercassem de perto o Prisioneiro: Tenet eum ducite caute.

Presa da paixão, já tendo vendido o Mestre, sentindo aliás que toda fuga era impossível, toda demora inútil, mais provável é que tivesse tomado sem constrangimento o seu partido de ser julgado pelos Apóstolos pelo que era. É, pois, rapidamente, eu ia dizer desassombradamente, que ele se adianta: “Mestre, eu Vos saúdo”. E beijou Jesus.

Jesus, este tem duas palavras: a primeira é ainda uma delicadeza do Seu amor: “Amigo, diz com simplicidade, que vindes fazer? Que quereis? Por que viestes?”

Depois acrescenta logo, com esse tom pungente do amigo profundamente magoado:

“Oh como, Judas... tu me entregas com um beijo?!...”

Porque o Mestre que vê o fundo dos corações e para quem o passado é como o presente, o Mestre ouviu no caminho as palavras trocadas entre Judas e os soldados.

Estes não conhecem Jesus. Como é Ele? Que corpo tem? Que feições? Será de noite, os discípulos são muitos; dizem que há um que se parece com Ele – era Tiago, o Menor –, que sinal, pois, para O distinguir?

De que cor é a veste dEle?

Judas tranquiliza-os com uma palavra: Nada mais fácil. Eu me adiantarei, e aquele que eu beijar será Ele. Prendei-O e guardai-O bem guardado.

Judas! Um beijo! Aí estão pois o sinal e os sinais.

A ingratidão e a traição assombram, transtornam-nos a alma, custa-nos dar-lhes crédito... Será possível? Ele?... que Eu distingüira, que Eu chamara! Ele que compartia a minha vida, os meus segredos; ele, a quem Eu reservava a mais alta dignidade do mundo: Apóstolo, fundamento da Igreja!

Ah! Se fosse um dos meus inimigos, no mínimo um indiferente; porém tu, Judas, meu amigo, ad qui venisti?

A que viste?

Todo pecador é um ingrato. Mas há graus no pecador, porque os havia entre os amigos. A gravidade do pecado mede-se sem dúvida pela matéria e pela intenção, mas também pelas graças de escolha e pelas infinitas delicadezas de um amor já tantas vezes atraiçoado e vendido.

Todos os crimes deviam estar representados na Paixão do Cristo. Cada qual deve nela desempenhar a seu papel.

Quando, ao clarão das tochas, no meio do horto, cercado pela criadagem e pelos soldados, Jesus sentiu se abaterem sobre Ele os lábios de Judas, aceitou o beijo porque sentiu neste beijo todas as traições secretas ou públicas daqueles a quem mais havia de amar no decorrer dos tempos, os Seus sacerdotes e os Seus religiosos. Judas era um e outro.

A trama íntima da Paixão é aliás o abandono, a desafeição, a traição. Sobre essa trama dolorosa desenhar-se-ão em traços de sangue todos os padecimentos físicos do Salvador e todas as Suas demais humilhações: maior não houve, porém, do que a de se ver assim repudiado, Ele que tanto amara, Ele que só fizera amar.

Era forçoso, porém como expiação, pois nada fere mais o Coração de Deus do que ver a Sua criatura abandoná-lO.

Como explicar diversamente a falência completa dos Apóstolos, senão por essa severa intenção da Justiça Divina?

Porque, tão depressa foi Jesus preso e atado, todos, sem exceção a princípio, todos O abandonam e fogem. É uma debandada, não fica ninguém. Previra-a Jesus, essa desafeição; e temera-a, a tal ponto que prevenia dela os Seus Apóstolos: é a grande tentação que os ameaça. Quando Ele lhes avisa que orem, que vigiem, para não sucumbirem à tentação que se aproxima, é dessa que fala. Grande, com efeito, era essa tentação. Toda a fé dos Apóstolos, laboriosamente desenvolvida no seu coração desde há três anos, está agora em jogo. A provação dessa fé consistirá justamente nessa prisão odiosa de Jesus, no meio da noite, e de Jesus que consente, que perde aparentemente todo o Seu poder. Não é ainda a provação quotidiana da fé, principalmente nestes tempos de prevaricação geral dos homens e de profundo silêncio de Deus?

Certo, era duro de crer que debaixo daquele Ser prostrado, batido, beijado e traído por um dos Seus houvesse um Deus, o único Deus, o grande Deus! E, semelhantemente, é duro ainda hoje para os justos oprimidos ver o malogro coroar-lhes a paciência, enquanto que triunfa a audácia dos pecadores.

Jesus, para preparar os Seus, começara por lhes mostrar a Sua fraqueza [aparente], o Seu temor, as Suas vacilações angustiadas, o Seu Sangue a correr sob os golpes do medo; e ainda assim só tinha querido mostrar este horrível espetáculo aos três prediletos. Ai! A tentação era já demasiado forte, mesmo para eles.

Poucas almas aceitam Jesus humilhado, poucas gostam dEle atado e O adoram crucificado.

- Vigiai, pois, e orai, repetia o Mestre, a fim de não sucumbirdes ao espetáculo escandalizador da minha agonia e da minha aparente impotência. E os Apóstolos, longe de vigiar e orar, dormiam. Assim se lhes preparava a fuga; assim, de esboçarem um vago movimento de resistência, tudo abandonaram.

E ei-los agora que correm desatinados através dos túmulos do vale de Josafat. Acossa-os o medo, a dúvida dilacera-os: sim, a dúvida, porque desta dúvida fazem eles uma desculpa para a sua fuga. Afinal, quem sabe? Os Pontífices e os Anciãos talvez tivessem razão: um ente que se deixou agarrar daquele modo e levar como um ladrão, para quem no momento oportuno Deus é silencioso... ter-se-iam eles, os Apóstolos, enganado-se? E não acham cavernas bastante profundas onde se esconderem, e refugiam-se em túmulos. Bem podiam sepultar neles a sua fé e o seu amor.

Como não termos, nós, esta dúvida cruel a respeito deles, quando a gente pensa que, à exceção de um só que subiu ao Calvário – o mais moço – nenhum deles houve que ousasse mostrar-se nas ruas no dia seguinte, e que aqueles que deviam mais tarde anunciar esse grande excesso do amor de Jesus na Cruz, esses, digo, nada viram, a não ser a nuvem espessa e acusadora das trevas que cobriram o mundo inteiro durante as três horas que o Cristo levou a morrer no Gólgota! Eis o resultado de três anos de amor, de ensinamentos, de vida íntima e familiar: três anos de Coração a coração e de doces colóquios! Relicto eo omnes fugerunt. Abandonando-O, todos fugiram.

Por que nos admirarmos? Não era preciso que os nossos abandonos estivessem representados?

Quem de nós não terá experimentado às vezes, talvez muitas vezes, essas derrocadas da consciência, essas derrotas da vontade? Promessas não nos faltaram nas horas de fervor, e tais eram então os nossos sentimentos, o fogo ardente do nosso amor, que nada parecia dever separar-nos do Mestre tão amado...
Ora, eis que, de surpresa, a nossa alma, assim como o horto, é invadida: as paixões desencadeadas lá estão, armadas, envolventes: há laços, grilhões, dardos que furam, lâminas que matam... “A quem buscais?” – A Jesus, esse mesmo Jesus que aí está no teu coração.

Pedro, Tiago, João, André, vós os queridos e os privilegiados, defendei o vosso Mestre. Almas eleitas, a quem Deus fez tantas carícias, a quem passeou de Tabores em Tabores, almas de sacerdotes, almas religiosas, eis aí o momento, defendei o Vosso Jesus.

E é um desbarato, a vontade foge louca, já não se importa com Deus, e após uma primeira falta eis que estas se acumulam: essa alma desce tão baixo quão alto havia subido. Como para os Apóstolos, é a fuga através dos túmulos; a derrota é completa, até que, por entre aquelas mesmas pedras fúnebres onde se ia sepultar, a alma encontre ainda – pois Ele está por toda a parte – esse mesmo Jesus que ela traiu e que lhe estenderá os braços para retomá-la e de novo amá-la.

O fons amoris perpetui, quid dicam de te? Ó fonte do amor inexaurível, que hei de dizer de Vós? (Imit., l. III, 10)

No local em que Judas beijou Jesus e onde começou a debandada dos Apóstolos, o caminho passa poeirento, indiferente; sobe sulcando pela montanha: não há hoje mais que umas poucas oliveiras espaçadas ao longo da estrada, mas ainda assim o cenário permanece impressionante e desolado. À direita, entre duas muralhas, um atalho dá num beco sem saída: no muro do fundo há uma pedra engastada onde se acham esculpidas, meio apagadas pelo tempo, duas cabeças que um beijo aproxima. Eis tudo quanto assinala a vergonhosa e dolorosa traição. Gostaríamos de ver elevar-se ali um santuário de expiação.

É verdade que esse beijo atravessou os séculos, que ele se dá ainda todos os dias, e que Jesus repete a cada vez, não sem menor dor: “Oh! Como?! Tu que eu amava... um beijo...”

A cada um de nós, pois, cumprir a sua parte de expiação, beijando amorosamente, e com freqüência, os pés do seu Crucifixo, para reparar o outro beijo que se deu talvez na Face e em pleno dia.

(Segunda parte do livro “A subida do Calvário”, do Padre Louis Perroy, SJ)

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