A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
XII. O PRIMEIRO PILATOS: NADA DE QUESTÕES.
A personagem de Judas é repugnante, o papel de
Caifás revoltante; o de Pedro é doloroso. Pilatos é triste. Nada mais complexo
do que a cena do Pretório. A bem dizer, é o único episódio que apresenta um
drama em resumo no grande drama do conjunto. Em qualquer outro caso, o assédio
está feito: Judas sabe o que quer; Anás e Caifás ainda mais; quando Jesus
comparece perante eles, já está condenado: todo o aparato que se ostenta é uma
sinistra encenação. “A sentença já estava
decretada, buscavam-se só pretextos”. (E. Renan, Vida de Jesus, XXI.)
Pedro, este é surpreendido; em todo caso, esboça pouca resistência para
defender seu Mestre.
À primeira palavra da porteira, começa a trair.
Pilatos é o único, nesse conflito de paixões e interesses caldeados, que
sinceramente procura salvar Jesus. Porquanto não há dúvida alguma sobre este
ponto: ele queria arrancá-lo ao suplício que vêm requerer dele: Quaerebat Pilatus dimittere eum (Jo
12,2).
E é o que torna tristemente dramática a personagem
de Pilatos. Ele não sabe querer; flutua, não quisera condenar o inocente, e
manda-o ao suplício proclamando que Ele nada fez de mal.
O medo, a fraqueza, o respeito humano podem, pois, num dado momento, sufocar os
melhores sentimentos do homem. É isto que é triste. A fraqueza no ódio e no
crime é ainda preferível: chega ao mesmo resultado, mas sabe e quer esse
resultado.
Jesus perante Pilatos é o eterno conflito do dever
perante o interesse próprio: nada é mais pungente na cena íntima do coração do
homem.
Pilatos é o melhor representante desse interesse a
braços com a consciência. Passa por todos os sentimentos que experimentamos
quando há luta entre o dever e a paixão.
De começo, Pilatos enfada-se com aquele embaraço. É
o primeiro instinto de todo homem de posição que aceitasse gostosamente as
honras, desde que lhe não dessem nenhum cuidado. – Nada de questões. – A
virtude administrativa de certos homens não vai, amiúde, além dessa destreza em
evitar, em contornar as dificuldades, ou em fazê-las jeitosamente resvalar
sobre outro. É o primeiro Pilatos.
Anunciam-lhe, desde a manhã, que lhe vão trazer
Jesus. Ele não está sem ter ouvido falar de Jesus, todos falavam dEle. Sabia
ainda muito bem – a polícia romana não contraviera a nenhuma lei essencial:
então que queriam dele Pilatos?
Por outro lado, Pilatos
sabia-se impopular entre os Judeus; não gostava, assim, de entrar em
contato com eles.
A sua impopularidade datava de longe (Fouard, Vida
de Jesus Cristo, t. 1, I. II, c. 1. – Josefo, Antiguidades judaicas, 1. XIII,
c. IV). Desde a assunção do cargo, quisera ele, como todos os que estréiam
arvorar-se em senhor absoluto: assim, prentedera instalar em Jerusalém uma
guarnição com os seus estandartes. Favorecidas pela noite, as tropas haviam
entrado. Grande alvoroto do dia seguinte: a cidade subleva-se, corre-se até
Cesaréia, onde se achava o procurador, a pedir-lhe a retirada daquela
soldadesca ofensiva. Recusa de Pilatos, teima dos Judeus, clamores excessivos
durante cinco dias. Maçado, manda Pilatos carregar contra os recalcitrantes;
deitam-se todos imediatamente no chão, declarando que lhes hão de passar por
cima, mas eles não cederão uma polegada dos seus direitos. E Pilatos cede. Foi
assim que ele estreara.
Desgostoso consigo mesmo e com os outros, daí a
algum tempo ele ensaiava de novo a sua autoridade. Desta vez são escudos de
ouro portadores do nome das divindades pagãs que ele suspende, em Jerusalém,
aos muros do seu palácio vizinho do templo. Novas borrascas: o povo entra em fermentação,
quer fazer tirar aquelas insígnias profanas. Há resistência; todo aquele
barulho acaba por atravessar os mares, e logo, a uma ordem de Tibério, Pilatos
é forçado a ceder ainda. Decididamente, faltava-lhe
jeito, pois corria risco de não ser prestigiado junto aos altos poderes.
Como sucede aos espíritos fracos e,
todavia bem intencionados, tenta ele então agradar.
Jerusalém carecia de água: quer-lha ele trazer por
meio de um gigantesco aqueduto. Iam os trabalhos começar, quando um boato se propala
entre o povo: - Vão empregar naquela construção os rendimentos do templo!
Novamente os Judeus se amotinam, e lançam-se sobre os operários. Faz-se mister
parar o trabalho, e Pilatos tem de ceder ainda.
Tudo isto faz-nos compreender a mentalidade e o
caráter desse homem. Um primeiro movimento no sentido da autoridade ou da
bondade; depois, ante o obstáculo, há primeiramente contumácia de parte a
parte; a dificuldade cresce, a contumácia acarreta a violência, mas de repente
a imagem de Tibério surge no horizonte qual espectro ameaçador. Se Tibério
ainda tem de intervir, adeus do Procurador inábil que de longe dá esse cuidado
de amo.
E Pilatos cederá.
Por isto mesmo, ele já tomou este partido. Desde
aquelas três questões mal-afortunadas, como ele não quer mais conflitos com
aquele povo fanático da sua lei e do seu Deus, retira-se pelo ano todo para
Cesaréia, naquela bela planície de Saron, onde florescem as laranjeiras e onde
se estendem as longas searas douradas. A residência era agradável; ela a tornava
régia.
Quando muito, aparecia em Jerusalém pelas festas da
Páscoa; mas conservava-se fechado na Antônia, onde era o seu Pretório, e
cercava-se então de todo o aparato do poderio militar, como para mostrar estar
pronto para a repressão. De fato, porém, a sua
autoridade era suportada como a sua presença: não era aceita.
Ora, por uma secreta fatalidade, era justamente
durante uma daquelas curtas permanências, na véspera daquela grande festa da
Páscoa, que o embaraço tão cuidadosamente evitado e o conflito temido se lhe
apresentavam sob a forma e a presença de Jesus. Compreende-se o mau humor do
Procurador quando o vieram incomodar naquela manhã da véspera das Páscoas
judias.
Esse mau humor cresce ainda de ponto quando lhe
dizem que os Judeus não querem entrar: vedava-o a lei deles, pois se
inquinariam com a presença de um pagão – fosse ele Procurador, - e não
poderiam, portanto cumprir naquela mesma noite o seu rito pascal. (Fouard, Vida
de Jesus Cristo, t. 1, p. 369). Esta exigência era, pelo menos, impertinente;
forçosamente, deve ter duplicado o azedume de Pilatos. Mas
ele cede ainda, cede sempre. De que servia a resistência? Ele se lembra
daquele povo a se deitar por terra, lembra-se, sobretudo dos escudos retirados
por ordem de Tibério... em suma, sai, adianta-se, e, quase em cólera:
- De que é
que acusais este homem?
Os Judeus sentiram o azedume secreto; respondem
insolentemente:
- Se não
fosse um malfeitor, não o teríamos trazido.
- Custodiai-o
então vós mesmos, retruca Pilatos: tendes uma lei... – e havia nesta
palavra um amargor que lhe relembrava um passado inteiro, - tendes uma lei,
julgai-o segundo a lei, julgai-o segundo a vossa lei. Isto equivalia a dizer:
Deixai-me sossegado; nada de questões, sobejas já as tive convosco. Eis aí todo
o primeiro Pilatos.
Ele existe ainda; temo-lo encontrado
em nós e nos outros. Nós não queremos ser incomodados nem mesmo por Deus. Se Ele se torna um empeço para os nossos
negócios, para a nossa carreira e para o nosso acesso, buscamos a evasiva e
implicamos talvez no mal, conosco mesmo, aqueles que nos cercam ou que de nós
dependem. É difícil amar a Deus acima de alguma coisa, mormente se essa
alguma coisa tem ligação com o nosso coração ou com a honra mundana.
Sem embargo, cumpre a todo transe receber tal e
qual aquele prisioneiro estorvante. Jesus lá está,
no meio dos soldados, sentindo a humilhação. Pilatos manda-O entrar.
Teve tempo de apanhar no ar três capítulos de acusação que Lhe bradam os
sacerdotes. É um agitador, - recusa pagar o tributo a César, - diz-se Rei dos
Judeus.
O Romano despreza as duas primeiras acusações. Bem
sabe que não são fundadas. A província está calma, e todos os impostos lhe
advêm. Retém então o terceiro agravo, e, bruscamente, meio zombeteiro, meio
irritado pergunta:
- É verdade que és o Rei dos Judeus?
Havia tal contraste no objeto da pergunta, entre a
realeza e o ente miserando que estava em pé diante do Romano onipotente, que
facilmente se compreende a amarga ironia que devia apartar num sorriso de dó os
lábios do Procurador.
Jesus quer saber se lhe fazem seriamente a
pergunta, e interroga:
- Dizeis isto
vós mesmo, ou vo-lo disseram outros de Mim?
- Então eu sou Judeu, eu, - (o mau
humor reapodera-se de Pilatos) – para
saber o que é verdadeiro ou falso sobre este ponto? Vejamos: entregaram-te nas
minhas mãos, os teus patrícios; que foi que fizestes?
Jesus desdenha responder a esta pergunta, mas
retoma o fio da primeira interrogação que Pilatos parece desprezar, e fala da
Sua realeza, afirma-a; Ele também tem soldados, mas o Seu reino não é deste
mundo. Acusava assim o Seu título, a realidade dos Seus direitos, e a realidade
também de um outro mundo, onde estavam a Sua corte, o Seu exército, o Seu
poder.
- Então és
mesmo Rei? insiste Pilatos.
- Sim,
responde Jesus. E justamente vim desse
outro mundo à terra para fazer conhecer a verdade sobre todas as coisas, sobre
as da Minha realeza como sobre as do Meu Reino.
- A verdade! Prossegue Pilatos, cético e cismador; que coisa é a verdade?...
E sai.
O interrogatório lhe basta: ele tem diante de si um
utopista, um alucinado, um místico, tudo, menos um criminoso.
- Mas,
diz ele aos sacerdotes que esperam amotinados à porta, mas não há matéria alguma para condenação neste homem.
Ele punha nesta simples frase um tom de
sinceridade, e também uma secreta satisfação. Não se lhe dava, com efeito,
depois das exigências dos Judeus que vinham incomodá-lo e lhe impunham aquelas
marchas e contramarchas, não se lhe dava de lhes mostrar a inanidade das suas
acusações.
No pensamento de Pilatos, o incidente está, pois,
absolutamente encerrado: não há sequer matéria para processo, como iria ele
então condenar? É uma improcedência pura e simples.
E Pilatos manda trazer Jesus para soltá-lO e
recolher-se em seguida ele próprio, contente de se haver desvencilhado tão
comodamente de uma aborrecida questão.
(A Subida do
Calvário, pelo Pe. Luís Perroy.)
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