segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A Subida do Calvário 2º parte - XII. O PRIMEIRO PILATOS: NADA DE QUESTÕES.


A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO

XII. O PRIMEIRO PILATOS: NADA DE QUESTÕES.
 
 

A personagem de Judas é repugnante, o papel de Caifás revoltante; o de Pedro é doloroso. Pilatos é triste. Nada mais complexo do que a cena do Pretório. A bem dizer, é o único episódio que apresenta um drama em resumo no grande drama do conjunto. Em qualquer outro caso, o assédio está feito: Judas sabe o que quer; Anás e Caifás ainda mais; quando Jesus comparece perante eles, já está condenado: todo o aparato que se ostenta é uma sinistra encenação. “A sentença já estava decretada, buscavam-se só pretextos”. (E. Renan, Vida de Jesus, XXI.) Pedro, este é surpreendido; em todo caso, esboça pouca resistência para defender seu Mestre.

À primeira palavra da porteira, começa a trair. Pilatos é o único, nesse conflito de paixões e interesses caldeados, que sinceramente procura salvar Jesus. Porquanto não há dúvida alguma sobre este ponto: ele queria arrancá-lo ao suplício que vêm requerer dele: Quaerebat Pilatus dimittere eum (Jo 12,2).

E é o que torna tristemente dramática a personagem de Pilatos. Ele não sabe querer; flutua, não quisera condenar o inocente, e manda-o ao suplício proclamando que Ele nada fez de mal. O medo, a fraqueza, o respeito humano podem, pois, num dado momento, sufocar os melhores sentimentos do homem. É isto que é triste. A fraqueza no ódio e no crime é ainda preferível: chega ao mesmo resultado, mas sabe e quer esse resultado.

Jesus perante Pilatos é o eterno conflito do dever perante o interesse próprio: nada é mais pungente na cena íntima do coração do homem.

Pilatos é o melhor representante desse interesse a braços com a consciência. Passa por todos os sentimentos que experimentamos quando há luta entre o dever e a paixão.

De começo, Pilatos enfada-se com aquele embaraço. É o primeiro instinto de todo homem de posição que aceitasse gostosamente as honras, desde que lhe não dessem nenhum cuidado. – Nada de questões. – A virtude administrativa de certos homens não vai, amiúde, além dessa destreza em evitar, em contornar as dificuldades, ou em fazê-las jeitosamente resvalar sobre outro. É o primeiro Pilatos.

Anunciam-lhe, desde a manhã, que lhe vão trazer Jesus. Ele não está sem ter ouvido falar de Jesus, todos falavam dEle. Sabia ainda muito bem – a polícia romana não contraviera a nenhuma lei essencial: então que queriam dele Pilatos?

Por outro lado, Pilatos sabia-se impopular entre os Judeus; não gostava, assim, de entrar em contato com eles.

A sua impopularidade datava de longe (Fouard, Vida de Jesus Cristo, t. 1, I. II, c. 1. – Josefo, Antiguidades judaicas, 1. XIII, c. IV). Desde a assunção do cargo, quisera ele, como todos os que estréiam arvorar-se em senhor absoluto: assim, prentedera instalar em Jerusalém uma guarnição com os seus estandartes. Favorecidas pela noite, as tropas haviam entrado. Grande alvoroto do dia seguinte: a cidade subleva-se, corre-se até Cesaréia, onde se achava o procurador, a pedir-lhe a retirada daquela soldadesca ofensiva. Recusa de Pilatos, teima dos Judeus, clamores excessivos durante cinco dias. Maçado, manda Pilatos carregar contra os recalcitrantes; deitam-se todos imediatamente no chão, declarando que lhes hão de passar por cima, mas eles não cederão uma polegada dos seus direitos. E Pilatos cede. Foi assim que ele estreara.

Desgostoso consigo mesmo e com os outros, daí a algum tempo ele ensaiava de novo a sua autoridade. Desta vez são escudos de ouro portadores do nome das divindades pagãs que ele suspende, em Jerusalém, aos muros do seu palácio vizinho do templo. Novas borrascas: o povo entra em fermentação, quer fazer tirar aquelas insígnias profanas. Há resistência; todo aquele barulho acaba por atravessar os mares, e logo, a uma ordem de Tibério, Pilatos é forçado a ceder ainda. Decididamente, faltava-lhe jeito, pois corria risco de não ser prestigiado junto aos altos poderes.

Como sucede aos espíritos fracos e, todavia bem intencionados, tenta ele então agradar.

Jerusalém carecia de água: quer-lha ele trazer por meio de um gigantesco aqueduto. Iam os trabalhos começar, quando um boato se propala entre o povo: - Vão empregar naquela construção os rendimentos do templo! Novamente os Judeus se amotinam, e lançam-se sobre os operários. Faz-se mister parar o trabalho, e Pilatos tem de ceder ainda.

Tudo isto faz-nos compreender a mentalidade e o caráter desse homem. Um primeiro movimento no sentido da autoridade ou da bondade; depois, ante o obstáculo, há primeiramente contumácia de parte a parte; a dificuldade cresce, a contumácia acarreta a violência, mas de repente a imagem de Tibério surge no horizonte qual espectro ameaçador. Se Tibério ainda tem de intervir, adeus do Procurador inábil que de longe dá esse cuidado de amo.

E Pilatos cederá.

Por isto mesmo, ele já tomou este partido. Desde aquelas três questões mal-afortunadas, como ele não quer mais conflitos com aquele povo fanático da sua lei e do seu Deus, retira-se pelo ano todo para Cesaréia, naquela bela planície de Saron, onde florescem as laranjeiras e onde se estendem as longas searas douradas. A residência era agradável; ela a tornava régia.

Quando muito, aparecia em Jerusalém pelas festas da Páscoa; mas conservava-se fechado na Antônia, onde era o seu Pretório, e cercava-se então de todo o aparato do poderio militar, como para mostrar estar pronto para a repressão. De fato, porém, a sua autoridade era suportada como a sua presença: não era aceita.

Ora, por uma secreta fatalidade, era justamente durante uma daquelas curtas permanências, na véspera daquela grande festa da Páscoa, que o embaraço tão cuidadosamente evitado e o conflito temido se lhe apresentavam sob a forma e a presença de Jesus. Compreende-se o mau humor do Procurador quando o vieram incomodar naquela manhã da véspera das Páscoas judias.

Esse mau humor cresce ainda de ponto quando lhe dizem que os Judeus não querem entrar: vedava-o a lei deles, pois se inquinariam com a presença de um pagão – fosse ele Procurador, - e não poderiam, portanto cumprir naquela mesma noite o seu rito pascal. (Fouard, Vida de Jesus Cristo, t. 1, p. 369). Esta exigência era, pelo menos, impertinente; forçosamente, deve ter duplicado o azedume de Pilatos. Mas ele cede ainda, cede sempre. De que servia a resistência? Ele se lembra daquele povo a se deitar por terra, lembra-se, sobretudo dos escudos retirados por ordem de Tibério... em suma, sai, adianta-se, e, quase em cólera:

- De que é que acusais este homem?

Os Judeus sentiram o azedume secreto; respondem insolentemente:

- Se não fosse um malfeitor, não o teríamos trazido.

- Custodiai-o então vós mesmos, retruca Pilatos: tendes uma lei... – e havia nesta palavra um amargor que lhe relembrava um passado inteiro, - tendes uma lei, julgai-o segundo a lei, julgai-o segundo a vossa lei. Isto equivalia a dizer: Deixai-me sossegado; nada de questões, sobejas já as tive convosco. Eis aí todo o primeiro Pilatos.

Ele existe ainda; temo-lo encontrado em nós e nos outros. Nós não queremos ser incomodados nem mesmo por Deus. Se Ele se torna um empeço para os nossos negócios, para a nossa carreira e para o nosso acesso, buscamos a evasiva e implicamos talvez no mal, conosco mesmo, aqueles que nos cercam ou que de nós dependem. É difícil amar a Deus acima de alguma coisa, mormente se essa alguma coisa tem ligação com o nosso coração ou com a honra mundana.

Sem embargo, cumpre a todo transe receber tal e qual aquele prisioneiro estorvante. Jesus lá está, no meio dos soldados, sentindo a humilhação. Pilatos manda-O entrar. Teve tempo de apanhar no ar três capítulos de acusação que Lhe bradam os sacerdotes. É um agitador, - recusa pagar o tributo a César, - diz-se Rei dos Judeus.

O Romano despreza as duas primeiras acusações. Bem sabe que não são fundadas. A província está calma, e todos os impostos lhe advêm. Retém então o terceiro agravo, e, bruscamente, meio zombeteiro, meio irritado pergunta:

- É verdade que és o Rei dos Judeus?

Havia tal contraste no objeto da pergunta, entre a realeza e o ente miserando que estava em pé diante do Romano onipotente, que facilmente se compreende a amarga ironia que devia apartar num sorriso de dó os lábios do Procurador.

Jesus quer saber se lhe fazem seriamente a pergunta, e interroga:

- Dizeis isto vós mesmo, ou vo-lo disseram outros de Mim?

- Então eu sou Judeu, eu, - (o mau humor reapodera-se de Pilatos) – para saber o que é verdadeiro ou falso sobre este ponto? Vejamos: entregaram-te nas minhas mãos, os teus patrícios; que foi que fizestes?

Jesus desdenha responder a esta pergunta, mas retoma o fio da primeira interrogação que Pilatos parece desprezar, e fala da Sua realeza, afirma-a; Ele também tem soldados, mas o Seu reino não é deste mundo. Acusava assim o Seu título, a realidade dos Seus direitos, e a realidade também de um outro mundo, onde estavam a Sua corte, o Seu exército, o Seu poder.

- Então és mesmo Rei? insiste Pilatos.

- Sim, responde Jesus. E justamente vim desse outro mundo à terra para fazer conhecer a verdade sobre todas as coisas, sobre as da Minha realeza como sobre as do Meu Reino.

- A verdade! Prossegue Pilatos, cético e cismador; que coisa é a verdade?...

E sai.

O interrogatório lhe basta: ele tem diante de si um utopista, um alucinado, um místico, tudo, menos um criminoso.

- Mas, diz ele aos sacerdotes que esperam amotinados à porta, mas não há matéria alguma para condenação neste homem.

Ele punha nesta simples frase um tom de sinceridade, e também uma secreta satisfação. Não se lhe dava, com efeito, depois das exigências dos Judeus que vinham incomodá-lo e lhe impunham aquelas marchas e contramarchas, não se lhe dava de lhes mostrar a inanidade das suas acusações.

No pensamento de Pilatos, o incidente está, pois, absolutamente encerrado: não há sequer matéria para processo, como iria ele então condenar? É uma improcedência pura e simples.

E Pilatos manda trazer Jesus para soltá-lO e recolher-se em seguida ele próprio, contente de se haver desvencilhado tão comodamente de uma aborrecida questão.
                                           
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy.)

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