SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
IV. A TRISTEZA, O TÉDIO, O PAVOR.
A vereda que sobe ao horto de Getsêmani é talhada
no rochedo; passa primeiramente em frente ao túmulo de Absalão, sempre
entulhado das pedras que nele jogam por desprezo ao filho revoltado [que ele
foi], e alonga-se em seguida entre duas muralhas de rochas secas e frias.
Naquela noite inundavam-na as claridades da lua... e as sombras dos muros, dos ciprestes e das oliveiras estiravam-se muito negras no solo alvacento. Jesus, atravessada a torrente, tomara a dianteira, como o fazia às vezes, e avançava só, penosamente... quase a roçar as muralhas secas, como se sentisse necessidade de apoiar-se.
Atrás, o grupo amedrontado dos discípulos seguia-O, espreitando-Lhe os movimentos incertos e o caminhar infirme.
Nada interrompia o pesado silêncio daquela subida já dolorosa e que uma palavra do Cristo ia tornar lúgubre.
Com efeito, a um ponto da estrada tenebrosa, Jesus pára: parece oprimido e sem poder avançar mais, volta-se. Os Apóstolos se consternam à vista da Sua palidez assustadora... Todo o Corpo Lhe treme, tremulha-Lhe a voz entre os lábios cerrados, e Ele deixa cair estas palavras desoladoras:
– Eu estou triste... até o fundo d’Alma... e
triste até a morte.
Que contraste! Ainda há pouco, quando descia as
encostas do Ofel, tranquilizava os Seus, e a coragem Lhe brotava forte e
vivificante para ir levantar a alma cadente dos discípulos. E agora: Eu estou
morrendo... de tristeza. Há apenas um instante, do outro lado da torrente, a
Sua voz se elevava firme, vibrante, subindo como um derradeiro incenso até ao
trono do Pai, pedindo sem dúvida, porém determinando ao mesmo tempo: Pater...
volo... – Pai, Eu quero.
E agora, não só Ele já não quer, mas parece já não
poder orar sozinho, pois diz aos Apóstolos: Parai ali... e orai... e velai...
comigo.
Tem medo da solidão... e leva consigo os três privilegiados, Pedro, João e Tiago, e repete-lhes: Orai comigo, vigiai comigo.
Ainda uma vez, que mudança! Já não é o mesmo.
Os Apóstolos não compreendem nada. Nunca O haviam
visto assim, medroso, tão vacilante, tão
humano.
Viram-nO triste algumas vezes até a chorar;
viram-nO irritado, severo em certos momentos, mas apesar de tudo senhor de si
sempre.
Agora o leme parece largado, a Alma flutua-Lhe como um destroço à mercê de vagas encapeladas e invisíveis.
É de não se acreditar: Ele, desanimado, triste de
tristeza mortal, Ele, com medo e amargamente entediado até à náusea suprema!
Ele!
E os três, que estão parados a uma rocha à flor do
solo, miram o Mestre que se vai a alguns passos mais longe, entra numa gruta
sombria, profunda... eles aplicam o ouvido, escutam. Uma voz plangente sai do
antro escuro: – Meu Pai, soluça Ele, se é possível, passe longe de mim este
cálice doloroso e cheio...
Como? Que quer Ele dizer? Terão eles ouvido bem? – Passe, prossegue a voz terrificada e súplice, longe, longe de mim!
Que cálice? Por que rejeitá-lo?
Os Apóstolos se entreolham – não, não, já não é o
mesmo, está mudado.
Sim, está mudado... ei-lO com efeito que cai de
joelhos, não se agüenta mais.
– Meu Pai, repete incessantemente – pois diz
sempre a mesma coisa e parece só desejar essa coisa – Meu Pai, tudo Vos é
possível; passe longe de mim este cálice. Eu não o posso beber, passe...
E os Apóstolos, os três que O viram glorioso e
fúlgido como a neve cintilante no Tabor, enxergaram-nO então não já de joelhos,
não já de braços erguidos, não mais de Face erguida e a fitar o alto, porém
estendido a fio, aniquilado... no chão...
“Que lamentável postura!” (Bossuet).
Será mesmo Ele, em verdade? E os três se recordam,
Pedro principalmente. Quando um dia O tomara este à parte para Lhe dizer
baixinho, por amor: – Absit, Domine (Mat 16, 22) – Não, Senhor; Vós entregue,
flagelado, crucificado? Absit, nunca! Repreendera-o então abertamente o Mestre,
até a Lhe dizer: – Vai-te, demônio tentador... a carne e o sangue não podem
compreender as coisas de Deus...
... E lá está ela, essa coisa de Deus: um Ser
estendido, sem movimento, a pedir e a suplicar, implorando misericórdia...
Os outros também se podem lembrar daquilo que Ele dizia falando da Sua Paixão: – Eu sofro singularmente... de a ver retardada... é um banho em que aspiro a mergulhar: Quómodo coárctor (Lc 12, 50)...
Pois bem, ei-la, a Vossa Paixão, estais nele,
nesse banho tão suspirado – ei-lo, esse batismo de Sangue...
Para que então mostrar tanto ardor antes, se se
havia de ter tão pouca coragem no momento!
E todos estes pensamentos abatem a tal ponto o
espírito dos Apóstolos, que eles sucumbem também, aniquilados, e caem no
torpor...
Quanto tempo assim ficam?
Quem sabe?
Súbito uma voz os desperta, uma mão toca-os: – Oh,
como?... estais dormindo... tu, Pedro... que prometestes seguir-me... não podes
vigiar... comigo, perto de mim... uma hora sequer!
Eles abrem os olhos – o semblante que os fita está
coberto de um suor estranho, as mãos que os tocam estão úmidas de Sangue...
será um sonho?
Continuam a não compreender nada – tartamudeiam, não sabem o que respondem, tornam a cair pesados no solo. E Jesus se vai embora só, desalentado, sem apoio humano, cambaleante; e ei-lO de novo por terra e a gemer o Seu mesmo estribilho que Lhe ditam a tristeza, o tédio e o pavor...
(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ)
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