A Subida do Calvário
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
XIII. O SEGUNDO PILATOS: OS EXPEDIENTES.
A palavra de Pilatos, caindo no silêncio contido
daqueles sacerdotes impacientes de sangue e de morte, foi seguida de um clamor
imenso que surpreendeu e conturbou o procurador.
A vista de Jesus que chegava nas pegadas do Romano
aumentou os brados e as exclamações: estes partiam da multidão; da multidão, já
espessa e marulhosa, que ocupava o fundo da praça, sombria orla de onde se
desprendiam murmúrios e surdos rumores denunciadores de profundezas de ódio
insuspeitadas.
Pilatos poderia crer-se voltado aos maus dias de
Cesaréia. Pensava só ter que ver com uma camarilha: os sacerdotes; e achava-se
em face da multidão.
Até ele subia com concerto de furores e de
acusações, e, inclinado sobre todas aquelas bocas ululantes, a custo podia o
procurador precisar a forma e os matizes daqueles selvagens depoimentos.
Cansado de lutar, voltou-se para Jesus e perguntou-Lhe, já um tanto ansioso:
- Estás
ouvindo?
E, como Jesus Se calasse:
- Não ouves
então de quantos crimes eles te acusam?
E Jesus nada respondeu. É provável que,
destrinçando no meio dos gritos os principais agravos, Pilatos os fosse
reproduzindo a Jesus; porque mais tarde ele dirá ao povo: - Bem vistes que eu o interroguei na vossa
presença.
Jesus obstinava-Se em calar-Se, e isto muito
admirava o juiz; pressentia este algo de anormal, de grande, quiçá de
sobre-humano, naquele homem singular. Surge então o segundo Pilatos, que a todo
custo quer livrar-se daquela pesada questão, mais ainda do que livrar Jesus.
Porque aquela questão subitamente se ampliou e, mercê do concurso da multidão,
quase assume as proporções de um tumulto popular. É forçoso sair dela: Pilatos
procura a porta de saída.
Lançar aquele homem, que ele diz inocente, em pasto
ao povo em furor, ele ainda tem algum escrúpulo disso. Vira e revira o
problema; de repente uma palavra sobe até ele: falaram da Galiléia. Será que
Jesus é galileu? E, como lhe respondem afirmativamente, logo Pilatos aproveita
a ocasião e declina competência. Sendo galileu, é de Herodes que o acusado depende.
Ora, Herodes estava justamente em Jerusalém, e pouco se entendia com os
Romanos. Ao mesmo passo que se descartava do embaraço, Pilatos demonstrava
certa deferência a Herodes: tudo seria, pois, pelo melhor. Assim, não tendo
surtido efeito a improcedência, este expediente agora será mais feliz: Herodes
que decida!
No fundo, Pilatos cedia ainda. Era, além do mais,
uma primeira covardia; porque, afinal, se ele sentia o dever de ordenar a
improcedência, com que direito encaminhava Jesus a Herodes?
Ou Jesus era culpado ou não era. Ora, Pilatos
acabava de dizer que Ele não era culpado. Logo, não tinha senão que manter a
sua primeira decisão. Mas não ousa, procura safar-se da dificuldade; é bem o
superior fazendo resvalar habilidosamente à responsabilidade sobre outro.
Entrementes ele torna a entrar, mais uma vez
safou-se; a multidão também se vai, corre com os sacerdotes e com os anciãos
para o paço de Herodes: a praça fica limpa, tudo vai realmente pelo melhor.
“Reis,
governai afoitamente”, diz Bossuet. Nada é mais prejudicial a um povo, a
uma família, a um agrupamento qualquer, do que governá-los por expedientes. Não
se contenta a ninguém, nem a si nem aos outros: essa destreza tresanda a
prestidigitação. A probidade repele os
processos oblíquos, e a franqueza é sempre um pouco de altivez, porque é
aceitar as conseqüências da própria palavra e dos próprios atos. Isto pressupõe
força e honra; ora, não é a altivez feita destas duas coisas? Elas faltavam
totalmente a Pilatos.
Não tardou que novos clamores viessem tirá-lo da
sua covarde quietude. Herodes recambiava-lhe Jesus; divertira-se à custa dEle,
mas nada julgara.
Cruelmente volvido às suas perplexidades, Pilatos
quis, ainda assim, tirar proveito de Herodes. Este era Judeu, ele se lhe valeria
do nome; além de que a sua diligência não devia ter desagradado ao povo... Quem
sabe? Tudo ia talvez poder terminar razoavelmente. Desta vez, ele manda vir à
sua presença os príncipes dos sacerdotes, os sinhedritas, e, para lisonjear a
todos, à própria ralé, faz-se acessível, simula condescender, entrar-lhes nas
vistas: é quase bonancheirice.
- Trouxeste-me
este homem, diz-lhes ele, e
apresentastes-mo como um agitador pernicioso do povo. Interroguei-o na vossa
presença, e vós mesmos pudestes ver que, de tantos capítulos de acusação,
nenhum sério pude reter contra ele, Ademais, não me circunscrevi ao meu próprio
juízo: encaminhei esse Jesus a Herodes, e vós com ele, a fim de que pudésseis
repetir todas as vossas acusações. Herodes ouviu tudo, e ele mesmo nada achou
nada que merecesse a morte. Todavia, se alguma coisa houver que tenha
melindrado as vossas leis, vou mandar castigá-lo, estará dito tudo, e
mandá-lo-ei embora.
Pilatos cedia, e era uma nova covardia. Por que
esse castigo? Se se tratava da flagelação, não tinham os Judeus necessidade da
sua permissão para esse suplício, que lhes não transcrevia o direito. Mas eles
só lhe haviam trazido Jesus para a morte: claríssimamente fora isto declarado,
e desde o começo. – Não podemos matar ninguém, haviam dito desassombradamente
os sacerdotes, e então vimos pedir-vos que o façais por nós. – A flagelação
era, portanto, um rigor inútil, incapaz de engodar os sacerdotes e de saciar o
povo.
Fizeram-no sentir ao Procurador. Como o seu faro
cruel, a turba dos sacerdotes e a plebe amotinada viram bem depressa o
afrouxamento de Pilatos. O impulso estava dado, restava somente carregar
brutalmente sobre aquele pobre coração vacilante e sobre aquele espírito em
apuros, para acabar de fazê-los soçobrar.
Por sua parte, Pilatos parecia, entretanto
enrijar-se no pensamento de livrar Jesus; parece mesmo que a sua compaixão
despertada e não sei que temor reverencioso o induziam a esse partido. Em todo
caso, ele já avançara demais para recuar. Publicamente e por duas vezes
declarara que não achava nenhuma causa de morte naquele homem: não queria,
contudo, engolir todas as vontades daqueles Judeus opiniáticos e invejosos,
porque no fundo lhes farejou a baixa inveja.
Metade por amor-próprio, metade por comiseração natural,
vai, pois compreender ainda o salvamento da vítima.
Na sua política cavilosa, acredita ter achado a
melhor saída. Distingue maravilhosamente, naquela massa encrespada que lhe bate
os degraus do tribunal, as cabeças e os cúmplices, os sacerdotes e a multidão.
Que golpe mestre se conseguisse dividir aquelas duas categorias, a fazer salvar
Jesus, contra os sacerdotes, pela multidão! O expediente pareceu-lhe uma idéia
genial.
Era costume conceder ao povo o perdão de um
condenado à morte por ocasião das festas da Páscoa. Ora, havia, que aguardava o
suplício, um celerado famoso, por nome de Barrabás, o terror do povo, homicida
e sedicioso por todos temido...
Certamente que, pondo ao lado dele Jesus, aquele
Jesus que só bem fizera e que, diziam, havia estranhadamente curado cegos,
leprosos, e até ressuscitado mortos, Jesus benfeitor público ao lado de
Barrabás malfeitor consumado, e o povo encarregado de escolher, o povo só, pois
é o sufrágio deste que se vai pedir, o voto não podia ser duvidoso.
Pilatos parece então abandonar o seu projeto de
flagelação; senta-se no seu tribunal, e, com todas as mostras do poder que se
faz indulgente, lança àquela turba fremente o seu hábil e inesperado dilema.
- Ou Jesus ou
Barrabás? Escolhei.
E espera. Sem se dar conta, Pilatos cedia: era uma
terceira e sinistra covardia. Cada vez mais se afastava do seu primeiro
movimento, de bom, que dissera: Não há
nada que repreender neste homem. Pôr Jesus ao lado de Barrabás era, pelo
contrário, dizer: Ele é culpado. Era dizer mais: Ele já está condenado à morte,
pois só se libertavam os condenados ao último suplício. Sem dúvida ele queria
despertar no povo uma preferência por Jesus; mas afinal o põe no mesmo pé de
igualdade porquanto toda eleição a fazer pressupõe uma certa igualdade nos
indivíduos a eleger.
E Pilatos aguarda, fia do seu expediente; assim,
quando, naquele momento, sua mulher lhe manda pedir que não se envolva em nada
no caso daquele justo, ele a tranqüiliza: Jesus será salvo, é questão de tempo.
Sim, e justamente os sacerdotes empregam esse
tempo; os sacerdotes, que vêem a tática do Procurador, espalham-se
imediatamente pela multidão. Como um fermento secreto, qual veneno sutil,
circulam, trabalham, fazem ferver os espíritos já escaldados; e, quando Pilatos
se levanta e se inclina sobre o povo para ter a resposta, ouve só um grito: Non hunc! Este não! Jesus devia, pois,
estar presente, pois parece que esse termo O designa e O indigita. Este não,
dá-nos Barrabás. Non hunc, sed Barabbam.
(A Subida do Calvário, pelo Padre
Luís Perroy)
Nenhum comentário:
Postar um comentário