terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A Subida do Calvário 2º parte - VIII. PEDRO.


SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO

VIII. PEDRO.

Dois sentimentos precipuamente se devem formar em nós à medida que se nos desenvolve aos olhos a dolorosa Paixão de Jesus.

A humildade primeiramente: se assim se trata a lenha verde, que se há de fazer da lenha seca? Esta comparação não nos deveria abandonar. Em seguida a confiança: os meus pecados já estão lavados; a parte mais pesada da expiação está feita, eu só tenho que me aplicar o preço deste Sangue, sei onde e como. Finalmente, cumpre ajuntar esse pensamento de consolação, amarga sem dúvida, porém real: como ocupei a atenção de Jesus durante os Seus padecimentos! Como devo ter estado presente à Sua agonia do Coração, às Suas torturas do Corpo! E então, por uma conseqüência natural, acrescentaremos: como deve Ele estar agora presente a todas as minhas dores!

De fato, não há doravante sofrimento algum da nossa vida que não possamos vir embeber no oceano da Paixão. A onda das nossas dores encontrará aí uma onda semelhante: o sangue tocará o Sangue. Fasciculus myrrhae inter ubera mea commorabitur (Ct 1, 2). A lembrança da Paixão cá está no meu seio, como um ramalhete espinhoso e agreste; é só inclinar-me para lhe respirar o eterno odor. Inclinemo-nos amiúde, ocasião não nos há de faltar.

É de todos estes sentimentos, diversa e freqüentemente amalgamados, que nascerá o amor.

Enquanto Jesus se vai abandonado e desolado, convém que esse amor O acompanhe, fiel e condolente. Porque Ele se vai; desta vez está tudo bem acabado, os dois grupos se distanciam mais e mais um do outro: os soldados com Jesus amarrado tornam a subir as encostas do Ophel, e os Apóstolos embrenharam-se pelo vale, do lado de Siloé e das atrás gargantas da Geena.
 
Que solidão cruel para o Salvador, no séquito compacto e grosseiro que O cerca, que silencio no Coração em meio ao tumulto dos guardas... Já não tem um amigo. É a solidão angustiosa do Coração. Experimentamo-la algumas vezes durante a vida, freqüentes vezes na velhice. Outra há, porém, que nos assustará mais, é a de nos encontrarmos sós diante de Deus, à nossa chegada ao desconhecido do além. Onde refugiar-me? Por quem chamar? Por que amigo? Que socorro? Tudo se desvaneceu, tudo se escoou, tudo passou; ó minha alma, faze de teu Juiz um amigo enquanto ainda é tempo; depois será tarde demais.
 
Entretanto, Pedro, que fugiu como os outros, enche-se de remorsos. Torna atrás, não esqueceu os seus protestos solenes e os seus múltiplos juramentos: “Ainda quando todos Vos abandonassem, eu, eu não Vos abandonarei”. Premido por este aguilhão retrocede. O cortejo já vai longe, segue-o ele a passos prudentes, dissimulando-se, ora avançando e ora recuando. Que ver como acabará tudo aquilo.

É um misto de curiosidade e de respeito humano que o faz voltar. Há amor sem dúvida, mas já não está em primeiro lugar. Ora, o amor que não domina, cedo é dominado. Em Pedro é uma chama que já se entibia; a voz de uma criada extingui-la-á de vez. Ai está amiúde de que se compõem as nossas fidelidades: a uma mecha que ainda fumega! Deus bem que se quer contentar com ela, contanto que lha consintamos reacender; mas nós Lhe disputamos ainda essa centelha mortiça.

Esta lamentável história de Pedro é bem simples. A queda está no termo do declive como fatal, inevitável. É a história de todas as ocasiões em que nos enleia a nossa presunção.

Pedro chegou com outro discípulo até à porta. Este outro faz sinal à porteira, que ele conhecia, para mandar entrar aquele; Pedro entra.

– É então um dos discípulos dEle? Pergunta curiosamente a mulher.

A pergunta era natural. Pedro responde pressurosamente, a fim de afastar desde logo qualquer suspeita:

– Não, não.

E passa.

Disse ele essa palavra sem lhe prestar grande atenção; aliás, a seus olhos não tem aquilo conseqüência: uma porteira!... Preocupado com o seu intento, mistura-se aos soldados; o outro discípulo, conhecido do Sumo Sacerdote, entrou mais a dentro na sala.

No átrio onde se agruparam os soldados, conversa-se em derredor da fogueira. Conta-se o que se passa e as peripécias da prisão de Jesus. Uns vão, outros vem. Pedro aquece-se indiferente, escutando, sem dizer palavra. Os soldados todos se conhecem entre si: reparam, pois, no estranho.

– Será um dos discípulos dEle? Dizem; e depois, diretamente a Pedro:

– És discípulo dEle?

– Ó homem, não sou.

A conversa se reata de contínuo a esta segunda mentira. Pedro viu nesta apenas um expediente para alcançar o seu fim: não percebe que desce. Uma hora decorre.

No entanto, acabam de esbofetear Jesus; Pedro ouve tudo, está ao corrente, as zombarias recrudescem após esse ultraje, ri-se aquela gente ruidosamente da bofetada dada e recebida. A porteira atarefada vem, sempre curiosa, rondar em torno ao fogo, atraída sem dúvida por aquela algazarra. Reconhece Pedro.

– Eh! Diz ela; aqui está um que era discípulo dEle. E poderia acrescentar: Pediram-me que o deixasse entrar.

– Tu estavas mesmo com Jesus de Nazaré? Pergunta diretamente a Pedro.

– Não, mulher, em verdade não sabes o que estás dizendo; eu, discípulo dEle?! Não vejo o que queiras dizer.

Era já demais, em verdade, Pedro, que mente com sempre maior descaro, sente que não poderá sustentar por muito tempo aquele papel. Retira-se, era prudente, e dirige-se para a porta, como para sair. O galo começava a cantar: poderiam ser duas horas da manhã. A mulher percebeu o movimento do apóstolo: ela adivinha, penetra-lhe a fraqueza.

– Pois não; diz aos soldados, ele bem que era discípulo.
 
Os soldados então interpelam Pedro:

– Oh! Sim! És dos dEle; não és galileu? Basta te ouvir falar para te reconhecer o sotaque. E além disto, acrescenta vitoriosamente um outro, eu te vi no horto, eu.

Ante esta dupla prova esmagadora, Pedro não pode prosseguir no seu sistema de negação. Tornar atrás, confessar que mentiu, não o pode tão pouco. Irrita-se então, começa a vomitar algumas imprecações que são mera explosão da sua cólera; depois, das imprecações passa às blasfêmias, e acaba por estas palavras:

Eu nem sequer conheço esse homem de quem me falais! – Oh! Pedro!

Pela segunda vez o galo cantou.

Nesse momento Jesus saía da sala para ir rematar dolorosamente a Sua noite no meio da criadagem e dos soldados. Passava a um canto do pátio; virou-se para Pedro e olhou-o.
A alma do apóstolo transtornou-se: ele sai, chora, não cessará mais de chorar.

Assim, uma palavra de Jesus não pôde penetrar o coração de Judas, – Amigo, que vindes fazer? – mas um olhar faz fundir-se o coração de Pedro. É o único consolo, aliás bem amargo, do Mestre, em meio àquela noite acerba, e quão caro é comprado!

Paremos um instante. Contemplemos Pedro a fugir na noite, sem saber aonde vai, com a alma liquefeita, coando-lhe pelos olhos; os soluços a estrangularem-lhe a garganta, e ele a repetir maquinalmente, – pois é o grito fatal de todo remorso que revolve incessantemente o dardo que feriu de morte – Eu nem sequer conheço esse homem de quem falais!... E contemplemos também Jesus na sala baixa, coberto com o molambo que Lhe lançaram no Rosto, de olhos cerrados, cheios de lágrimas, a repetir também, – pois é o grito supremo da dor curvada sobre as próprias feridas – Eu nem sequer conheço esse homem de quem me falais. Aí está com que os ocupar um e outro: Pedro todo o resto da vida, Jesus até à morte.

Porque foi que Pedro caiu? Foi simplesmente porque se expôs à ocasião? Não, ele se devia a si mesmo, devia a Jesus Cristo o ir expor-se. Há perigos que devemos afrontar sob pena de covardia.

Será que ele não amava a Jesus Cristo?

Ardentemente. Palavras nunca lhe faltaram para dizer do seu amor. E por que foi então que os atos não seguiram as palavras?

O amor de Pedro por Deus não ia até o desprezo de si mesmo, porque ele não se conhecia bastante. Se ele soubesse o de que era capaz, nunca teria entrado no átrio.

Nós nos cremos sempre melhores e mais fortes do que somos: então nos desculpamos hipocritamente e nos expomos temerariamente. Raramente o pecador peca por malícia absoluta: a prova é que se desculpa sempre aos próprios olhos e muitas vezes aos olhos dos outros.

Há razões, circunstancias atenuantes, Pedro tem seu fim a demandar: quer ver o desfecho; quem lho poderia censurar? Mas esquece que é fraco, que teve medo ainda há pouco, como os outros. Não há dúvida que voltou, e isto o encoraja aos próprios olhos, voltou sozinho, e isto já o faz talvez preferir-se secretamente aos outros: ele se ignora.

Bem sabe que está no meio dos inimigos de Jesus; será preciso astuciar, tergiversar, sim; daí a mentir é um passo, talvez; porém a trair e renegar, nunca – pensa ele. Fá-lo, entretanto, como por um secreto encantamento do mal que o fascina, que o empolga e o arrasta. Poderia ele supor que havia, dormitantes em seu coração, ao lado de tantas palavras de amor, tão horríveis blasfêmias e uma negação tão vergonhosa?
Pedro ignorava a sua própria essência. Pedro se tinha também por mais forte, e foi por isto que se expôs temerariamente.

Todo pecador que se põe em face de uma tentação age do mesmo modo. ‘Eu sou livre, sei o limite do meu dever, posso puxar as rédeas quando quiser e a tempo. Beberei só uma gota do cálice sedutor’... Desgraçado de quem não sabe ou se esqueceu que não se põem impunemente os lábios à taça, e que a gota que embriaga está muito perto da que dessedenta. Há no mal entrevisto, há nos sentidos acalentados, apelos imperiosos aos quais se torna tão difícil resistir quanto aos que em nós despertam a sede e a fome.

Ficar nos umbrais de uma tentação é já entrar. Entrá-la é sucumbir. Vigiai, orai, para não entrardes na tentação, diz o Mestre. É, conseqüentemente, a porta que cumpre vigiar. Meu Pai, não nos deixeis entrar na tentação, afastai-nos mesmo desse veneno estonteador e pérfido: é o último grito da oração do Senhor.

Assim o pecador se desculpa, assim se ignora. Ai! Tal é a nossa ignorância de nós mesmo, que não só o homem se desculpa para fazer o mal, como também se desculpa ainda depois de o haver feito.

A consciência acusa-o, ele reconhece a culpa, mas contende ainda. Diz que não podia resistir, – mas, e aquelas rédeas que devia puxar a tempo? – que bem começara a lutar, mas viu-se metido em declives fatais; que ademais o combate se porfiou, e que contra a sua vontade ferida chegavam sempre novas tropas... Finalmente, imagina, a luta já não era igual; se foi vencido, é que foi invadido; a força nada pode contra o número.

Pobre pecador, está na situação trágica do desgraçado atirado ao vácuo, mas que um instinto supremo suspende ainda por um instante a um beiral, sobre o abismo: vê ele o apoio a que se agarra vergar pouco a pouco e ceder lentamente. Tornar a subir não pode; e, no momento em que tudo lhe vai falhar, fecha os olhos e cai bradando: Fatalidade!

Este último grito acusa-o, porque, se ele sabia ser o abismo do vício tão fatal, por que se atirar dentro? Mas se faz de conta que não sabe, e arrisca-se, é arrastado. Eis aí o nosso maior mal. Pedro tinha esta ignorância e esta presunção.

As suas belas qualidades alimentavam-lhe no fundo um certo fogo secreto de estima pessoal, e este amor de si acabaria, num dado momento, sufocando o amor a Deus.

Pedro ignorava a sua essência. Quem de nós conhece a sua? É porque a sabe Deus e a penetra que nos manda certas provações ou permite quedas afim de nos melhor abrir os olhos sobre nós mesmos.

Quem tiver um profundo desprezo de si fará grandes coisas. Quando a gente não mais se ama, como é mister que o coração aja e se mexa, bate este forçosamente por Deus.

Jesus queria que Pedro fizesse grandes coisas, e que só amasse a Ele e a Sua Igreja. Permitiu então essa queda deplorável que devia rasgar o véu estendido sobre o coração do apóstolo, tirar-lhe toda estima de si próprio, mostrar-lhe a sua essência – pois é só pela essência que valemos –, desgostá-lo para sempre de todo amor próprio, afim de que ele pudesse dizer sinceramente um dia e por três vezes:

– Senhor, Vós que conheceis tudo, Vós bem sabeis agora que eu Vos amo.

(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ)

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