SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
XI. A MULTIDÃO.
Mas até esse grande e último dia, Ele guarda
silêncio. Entremos, também nós, neste silêncio do Senhor; ele é profundo, é
cheio, é ao mesmo passo, esmagador e consolador.
Cada virtude de Cristo na Paixão é como um templo
místico no qual se penetra por uma porta baixa e, à medida que se avança, o
templo se alarga, as naves se prolongam, a obscuridade duplica a atração, a
alma embrenhada perde-se nele, olvida-se.
Repito, entremos nesse grande silêncio.
Silêncio sobre mim, sobre os meus, sobre o meu
passado, o meu presente, as minhas virtudes, os meus defeitos; silêncio sobre o
tudo e sobre o particular da minha vida. Este silêncio conduz-nos à perda de
nós mesmos. O nada se cala e não faz barulho, onde está?... Ninguém o procura.
Que de luz é preciso para saber falar! Quanta mais
é precisa para querer calar-se, e calar-se realmente! A boca que se cerra, os
olhos que se baixam, é a dupla porta que se fecha sobre o dileto que a gente
introduz no interior para estar a sós com ele.
A solidão e o silêncio fazem tombar a última
barreira entre os dois amados.
A partir do momento em que deixa o tribunal de
Caifás, Jesus entra cada vez mais no silêncio.
É, contudo, o momento em que pela
primeira vez Ele toma contato com a multidão. Acompanhemos esse grande silêncio
no meio daquela multidão volúvel, cheia de ódio. E por que cheia de ódio? Em
verdade, Ele não fez mal algum àqueles que O envolvem de todas as partes.
Ainda ontem eram gritos de alegria, eram os
caminhos juncados de palmas cortadas e de vestes lançadas, era o Homem em todo
o percurso das estradas, a porta Dourada transporta como que sob um arco vivo
de braços estendidos e de ramos triunfais entrelaçados por sobre a Sua
cabeça... A multidão é ondulante e vária sem outra alma que aquela que Lhe
sopram de fora. Havia muitos sopros que agitavam aquele mar e Lhe propeliam as
vagas furiosas. O ódio dos sacerdotes, a inveja dos anciãos, o medo dos
Sinhedritas; um sopro mais baixo: o de Satã; um sopro mais alto: a cólera de
Deus.
É singular que os homens percam do seu bom-senso e
da sua razão na proporção do número. Aquela multidão, composta de seres
inteligentes, não passa agora de uma massa irracional e insensata. A razão
individual parece perder-se, e perde-se efetivamente, na razão coletiva. Há
pouco tínhamos homens, agora temos apenas uma imensa criança, trêfega, volúvel,
irritável, passando do riso ao choro, gritando ao mesmo tempo o Hosana e o tolle, caprichosa no seu ódio e na sua
compaixão.
E Jesus atravessa a multidão. Esta multidão será um
dos agentes principais e dolorosos da Paixão. Ignora-se isto comumente:
todavia, é o fundo do quadro.
Quais essas nuvens de procela, que ascendem a pouco
no horizonte e acabam pelo encherem totalmente, a multidão irá engrossando do
tribunal de Caifás ao cimo do Calvário, e Jesus lhe passará pelo meio.
A primeira imagem que Ele depara desse ator de
papel progressivo e cruel é a turba dos soldados, o pessoal de faxina que foi
prendê-lO como a um ladrão; operaram eles durante a noite, com a hesitação, a
princípio, de um papel mal aprendido e a brutalidade, em seguida, de uma
consciência que nada mais tem a temer. Os soldados reforçam-se logo com os
criados e com as falsas testemunhas; a esses cumpre acrescentar os próprios
sacerdotes, vimo-los em ação: tudo isto já é multidão.
Mas o primeiro contato verdadeiro de Jesus com o
povo dá-se pela manhã, à saída do tribunal de Caifás.
Amanhecia, as ruas mal começavam a animar-se;
vinham-se, entretanto, os madrugadores habituais, isto é, o pessoal de serviço,
os criados, os mercadores de gêneros, e também um certo número de forasteiros,
pois a cidade regurgitava destes no momento da Páscoa. À primeira vista, para
aquela gente miúda como para os forasteiros, aquele homem que arrastam vivamente
ao pretório, para os lados da Antônia, é um malfeitor noturno, algum vagabundo
pilhado em flagrante delito: olham-no curiosamente e passam.
Entretanto, a escolta desperta a atenção: aqueles
soldados, aqueles criados, ainda esquentados de vinho e de palavrões, sobretudo
aqueles sacerdotes – Caifás é reconhecido – os anciãos, todo o Sinédrio... O
povo pára, cochicha, indaga.
- É Jesus de Nazaré? – O famoso profeta? – Ele
mesmo! Não há duvidar. – Ele, tão pálido, tão sujo, tão desfigurado, e amarrado
com força?
A notícia é lançada, é ela que amotinará a segunda
multidão que Jesus deparará esta mais densa e menos indiferente. À curiosidade
sucedeu a admiração, e surdo rumor prenuncia uma secreta irritação contra
aquele homem. Dizem que Ele quis entregar o povo à dominação romana; Ele já
está julgado pelos sacerdotes... é um bruxo perigoso, um desordeiro... poderia,
ao que parece pelos Seus encantamentos e sortilégios, arruinar tudo o que
nos restava de liberdade... é um desprezador de Deus, blasfemou...
Assim sobre a onda, engrossa subindo, e cobre-se da
escuma do povoléu.
Depois disto, quem poderá fiar-se nos sentimentos
da multidão? Todavia, que é que se não faz por essa enganadora popularidade? O aplauso do grande número tem seduzido a
muitos que haviam esquecido que só o aplauso de Deus é que vale.
Jesus, Ele sentiu-Se primeiramente humilhado de Se
ver obrigado a atravessar as ruas amarrado e cercado de soldados: é uma
confusão natural, que Lhe não há de ter faltado. Como era de manhã, por ora há
só confusão; mas, quando, um pouco mais tarde, Ele se viu arrastado pelas ruas
já mais movimentadas e mais cheias, até o palácio de Herodes, a confusão
redobrou, e a ela se juntou uma secreta indignação contra as falsas informações
que sublevavam a multidão.
Mas foi principalmente ao sair da corte de Herodes,
quando apareceu nas mesmas ruas marulhosas revestido irrisoriamente da túnica
branca, e quando ouviu à volta de Si aquelas esfuziadas de riso, aquelas
palavras contundentes com que O fustigavam a passagem, como a um ente degradado
e malfazejo, foi então que a medida se encheu: tudo foi ferido nEle, a honra, a
dignidade, a Sua doutrina tão pura e o Seu passado refulgente, que parecia
esboroar-se no riso da sarjeta.
Tal como o olho da criança, o da multidão apreende
eminentemente o ridículo: apraz-lhe o grotesco, porque o sacode de um riso
fácil e sem fim. A delicadeza dos sentimentos morre na massa humana como o som
tênue de uma lira se perde no burburinho da rua.
Ora, que mais ridículo do que a silhueta daquele
taumaturgo metido naquele saco branco, empurrado para a direita, jogado para a
esquerda, puxado em todos os sentidos, perdendo o equilíbrio, titubeando, já
não tendo sequer aquele porte firme e ereto tão próximo da altivez que agrada a
todos, mormente ao povo, debaixo das injúrias e das chalaças?
Que palavras deviam lançar-Lhe? Não o sabemos, mas
sabemos que cruéis não deixaram de lançar-lhas no alto da Cruz. Pode-se, pois,
facilmente conjecturar que O hajam acolhido à passagem com “gracejos tintos de
sangue” (Sermão sobre a Paixão, 2º ponto), consoante o termo expressivo de
Bossuet.
- Hosana ao
filho de David! Deviam gritar-Lhe aos ouvidos.
- Eis o que
vem em nome do Senhor! Estas palavras datavam de alguns dias apenas, toda a
gente as tinha em memória. E também; - Eis
aqui mais do que Salomão! Aludindo ao que Ele dissera de Si mesmo. E ainda,
com quantidade de ademanes de respeito e consideração: - O Filho de Deus... o Messias!... o Filho do Deus bendito...
Há um espírito da multidão que apreende sagazmente
a contradição e relembra tudo a calhar. Muitos dos que compunham aquele
populacho tinham ouvido de noite as perguntas do sumo sacerdote, e não deixavam
de formulá-las irrisoriamente de novo.
Aliás, tudo convidava a isso. Podiam ainda
escutar-se, por trás da porta do palácio de Herodes, os ecos frementes do
imenso gargalhar de toda uma tropa, de todo um grosso de cortesãos e de um
príncipe tanto mais galhofeiro quanto era depravado. A ironia, o sarcasmo vagam
facilmente nos lábios impuros.
Já pressente a multidão o espetáculo do Pretório e
do pátio dos soldados; apinha-se, multiplica-se, converge à pressa para onde
deve achar divertimento. Diverte-se com
tudo: dentro em pouco rir-se-á do flagelado a se torcer sob as chicotadas como
o verme debaixo dos pés, e do coroado de espinhos solenemente exibido em
público. Ademais, a veste branca é o prenúncio do manto escarlate.
Doravante nada será poupado ao vencido. Acabam de arremessá-lO ao vórtice da
multidão como um galho seco e sem seiva: nada mais há a esperar quando uma vez
se caiu no desprezo da multidão: não se torna a subir de tão baixo.
Outra faceta ainda mais humilhante, talvez, desse
desprezo popular não foi poupada a Cristo. Foi a decadência aos olhos de entes
conhecidos e até amados.
Ser desprezado por uma mansa pululante que nos ignora e que nós
ignoramos, certamente é uma ferida profunda para a nossa honra; sê-lo, porém,
como o foi Jesus, por um povo que O conhecia, que O aplaudira e que queria
fazê-lO Rei!... Passar coberto de lama, de borra de vinho e de
escarros pelo meio daqueles milhares de Galileus – conterrâneos – chegados para
as festas pascoais na cidade e postados de todos os lados... ver-se desmoronar
não já apenas no espírito de alguns discípulos amedrontados, mas no de todo um
povo escandalizado... assistir
pessoalmente a essa decadência progressiva e sem esperança de reabilitação:
esta humilhação era uma flecha aguda, escolhida, afinada, da justiça divina.
Sentiu-a Cristo revolver-se-Lhe nas chagas do coração.
Se o mesmo dardo humilhante nos vara, miremo-lo com
amarga consolação embeber-se-nos na alma, saboreemos uma ferida igual à do
pobre Jesus.
Há poucos eleitos, poucas testemunhas de Cristo,
que não tenham tido de sofrer desta flecha de escolha. Se não a tinham assaz ao
grado do seu amor, a si próprios a proporcionavam, repletos de santíssima
avidez. Um Santo Inácio ia humilhar-se aos pés de um confessor de quem era
conhecido, repetindo-lhe a dolorosa confissão das suas faltas. Um Lacordaire
entrava, por gosto, em particularidades supérfluas, mas que o cobriam de
confusão, perdendo assim voluntariamente a sua reputação íntima, para melhor
imitar Jesus perdido na de toda uma multidão em delírio.
Quando uma alma há uma vez provado os desprezos de Jesus, quem pode
contê-la de correr atrás do dileto que vai na frente coberto da veste fúlgida
das suas longas humilhações?
Neste drama da Paixão, desde que a multidão entra
em cena, aduz-Lhe a Sua confusão, a Sua irresistível pressão: há que contar com
ela. Verdadeiramente, é bem, por instantes, o principal personagem. Pilatos
dialogará com ela como com um só e poderoso interlocutor. Breve, já não serão
injúrias que sairão daquela boca terrível, porém intimações, insolentes e
brados de morte. É ela quem decide. O tolle
faz pender a balança, e, se esta balança parece, apesar de tudo, inclinar-se
para a inocência de Jesus, lança-lhe ela primeiramente Barrabás. Non hunc sed Barabbam. Tolle, tirai-o. Eis que agora é a Cruz: Crucifige, crucifige eum. Isto não
basta, o prato ainda torna a subir. Lança-lhe ela então o medo de César.
- Se não O condenas, não és amigo de César, brada ela a Pilatos. Desta vez o prato toca terra. Jesus segue toda a
cena, ouve-se passar todas as bocas, por todas vê-se repudiar: sobe, desce,
ei-lO salvo, ei-lO perdido; a multidão é quem tem a última palavra.
O papel dela prossegue assim até o Calvário. Ali naquele cimo lúgubre,
tudo é baralhado e confuso. A multidão é então aquele povo que passa meneando a
cabeça, são aqueles sacerdotes que apodam, aqueles soldados que jogam
insolentemente a veste de Cristo: uns bebem, outros riem, as santas mulheres
choram. João está consternado, Maria conserva-Se de pé.
Jesus murmurou: Perdoai-lhes.
Os ladrões insultam e blasfemam. As trevas cobrem pouco a pouco aquelas cenas
diversas. E, no meio dessa sombria trama, lá do alto Deus desenreda todos os
fios: já vê o centurião genuflexo, ouve o ladrão que confessa e implora Cristo;
salva uns e enjeita outros; em verdade, o mundo há mudado? Cessaram os justos
de sofrer e de ser misturados aos maus? E, de Seu lado, deixa Deus de escolher
e de tomar para Si os Seus eleitos?
(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy. S. J,
tradução de Luís Leal Ferreira, III edição, Editora Vozes)
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