SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
VI. O ANJO
Ai! Jesus vai apenas
entrando nesse mar doloroso da Paixão, e deve haver um como fatal progresso nas
Suas humilhações.
Ao Seu inefável
desalento teria faltado um sofrimento de escolha e todo íntimo, se Ele não
tivesse tido que ir mendigar socorro... e se o não tivesse recebido de fora.
Ele, o Forte, o Grande,
o Mestre, vai primeiro procurar um apoio nos Seus Apóstolos, qual um caniço que
se quer arrimar a outros!
Naquele horto onde perpassa o vento terrível da Justiça superior, tudo
está já deitado em terra... o Mestre... e os discípulos.
O Mestre, que estende a
mão para que O levantem, e os discípulos que estão aniquilados, sem vontade,
sem pena aparente senão de si próprios! A desgraça torna egoísta.
Ele que lhes repreendia
outrora a timidez e o pavor nas ondas agitadas de Tiberíades, vê-se obrigado a
vir por Sua vez agachar-se junto deles e dizer-lhes por toda a Sua atitude, por
Seu Rosto macilento e por Sua palavra trêmula, esta expressão que faz ruir todo
homem aos próprios olhos e aos olhos dos outros: Tenho medo!
Este quadro era
terrível para a fé dos Apóstolos, a qual teve de vacilar e quando menos de se
lhes entorpecer como as pálpebras e balbuciar como os lábios...
Já é o começo da
fuga... do abandono daqueles com quem tínhamos o direito de contar e que nos
deixam porque a nossa presença já não os
honra e a nossa amizade lhes é perigosa.
Este traço doloroso –
como todos os que mais sensíveis Lhe deviam ser – fôra assinalado de antemão
pelos Profetas.
“Busquei em
torno de mim alguém para me ajudar... e não achei”
(Sl 69, 20)
“Estou esquecido
como um morto, exceto pelos meus inimigos, que, estes sim, velam e avançam para
me prender, enquanto sou para os meus próximos como uma coisa molesta,
humilhante... e que se repele” (Sl 31, 12-13). “Pouco
falta para que me censurem pela minha fraqueza e pela minha miséria...”
(Eclo 13, 25), como se delas fosse Eu o
culpado!
Tanto é verdade que aos
entes superiores não lhes é lícito tornarem-se homens... sob pena de perderem
todo crédito entre os outros homens.
A verdadeira humildade
só de Deus é compreendida.
Quando Jesus viu que
aquele apoio humano Lhe era recusado, quis então lançar-se desesperadamente
para o lado do Céu.
Eis porém já mais de
uma hora que Ele bate à porta do Coração de Deus por aquela palavra que
conhecera sempre vencedora de todas as resistências: Pai, meu Pai, tudo
Vos é possível... Meu Pai... Abba Pater!
Que doce humildade neste
termo já tão doce!
E o Pai queda surdo; o
Filho continua a tremer, a agonizar.
E depois das lágrimas é
o Seu Sangue que corre, e nada vem do alto.
Nós temos horas
semelhantes, e foi para as consolar que lhes quis Jesus sentir o peso.
Desde aquela
agonia, se a terra nos repele e se Deus parece rejeitar-nos, temos um socorro.
Podemos refugiar-nos no sofrimento cruel do abandono do Cristo, e dizer-Lhe com
a certeza de encontrar eco:
– Vós pelo
menos, Vós podeis, Vós deveis compreender-me.
“Non habemos
Pontificem qui non possit compati”, “Não temos um Pontífice que não possa
compadecer-se...” (Hbr 4, 15).
Indubitavelmente Deus tivera sempre piedade dos homens,
como de Sua melhor obra; era uma alta piedade. A partir de Jesus Cristo, porém,
foi preciso achar um novo termo para designar a piedade que se abaixa a todas
as chagas, porque as experimentou todas: é a compaixão.
E nós temos agora um
Deus que... compadece.
Enquanto esse divino
Salvador deixa assim penetrar no Coração esse gládio doloroso que Lhe permitirá
doravante ser compassivo, o Céu parece entreabrir-se. Um raio de luz resvala na
noite e vem incidir naquele Corpo que sofre e naquela Alma que agoniza.
O Pai ouviu.
O Filho ergue a cabeça
para ver algo da Face augusta do Pai, aplica o ouvido para Lhe ouvir a palavra
consoladora.
Vê só um Anjo.
O Evangelho nada nos
conservou a mais. A piedade e a mística têm-se esmerado em pesquisar que Anjo
era esse: Miguel ou Gabriel? Era mister nada menos que o mais elevado dos
Espíritos Celestes.
Fiquemos na
simplicidade do texto:
Apparuit illi
Angelus – desceu um Anjo... é o bastante.
Deus não fala – o Pai
se cala. O tempo passou em que a Voz dizia do alto, doce como a pomba do
batismo, forte como o estrépito do trovão no Tabor e no Templo: Este é o meu
Filho dileto, em quem pus todas as minhas complacências.
Nesta hora não há mais
Filho, não há mais Deus aparentemente... há o Pecador... há o Pecador
universal...
“Eu Lhe mando porém o
meu Anjo – porque o prometi mesmo ao pecador... mas não Lhe mando senão isto...
Apparuit illi
Angelus.
É então um Anjo... um
Anjo cujo nome não conhecemos... um desconhecido.
E que faz ele? Uma
palavra o revela:
Confortans –
fortifica – , vem para levantar, para dar coragem.
E Jesus escuta...
baixando a cabeça, de mãos postas... humilhado desse socorro do alto que vem de
um ser tão inferior... porém agradecido – pois tinha precisão dele.
Não procuremos penetrar
indiscretamente as razões: é de joelhos que cumpre degustar essa humilhação tão
consoladora. Basta que saibamos que Ele, Jesus, recebeu conforto do Anjo... e
que nós teremos, sem dúvida alguma de O imitar sobre este ponto.
Efetivamente, seja qual for a sua força nativa ou adquirida, vem sempre uma hora, ainda que seja só a última, em que o homem tem necessidade de ser fortalecido.
Efetivamente, seja qual for a sua força nativa ou adquirida, vem sempre uma hora, ainda que seja só a última, em que o homem tem necessidade de ser fortalecido.
Ora, bastas vezes Deus permite que o socorro necessário nos venha de um ser desconhecido... e até inferior, a fim de que de um lado sintamos mais a nossa fraqueza, e de outro reconheçamos melhor a fonte de todo benefício, que é Ele só.
Por mais que procuremos
conchavar a nossa vida e a nossa morte, haverá sempre lugar para a surpresa
vivida por Jesus Cristo.
Como o Salvador
agonizante... procuraremos talvez em torno de nós os nossos próximos e os
nossos amigos.
A surpresa não lhes
terá permitido estarem lá; ou distanciá-los-á o decôro... e então os nossos
olhos se fecharão sob semblantes que não terão conhecido.
Como Jesus ainda, procuraremos um arrimo nessa suprema penúria. Só acharemos talvez a mão de um estranho... e o socorro de um sacerdote de ocasião, pedido às pressas; e todavia tínhamos almejado e preparado melhor.
Baixemos a cabeça, juntemos as mãos, aceitemos o anjo consolador qualquer que seja, deixemo-nos fortificar por essa palavra desconhecida: beijemos este traço de semelhança com o nosso divino Mestre, e como Ele reergamo-nos corajosos para irmos aonde Deus quiser.
(2ª parte da obra “A
subida do Calvário”, do pe. Louis Perroy, SJ)
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