SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO
V. A AGONIA.
É difícil ser corajoso
só e sem testemunha.
A coragem não passa muitas vezes de uma chama ateada pela presença daqueles que nos observam, e que nos hão de censurar ou de louvar.
A força diante da morte é por vezes uma exibição que requer um palco e exige espectadores.
O homem que conduzem ao
suplício tem um recuo involuntário; domina-se muitas vezes por medo... do medo:
é um outro medo.
Mas ninguém escapa a esse combate ao menos interior da vida que a morte cai colher.
Dele não se isentam os
próprios moribundos: é a agonia.
É ela ordinariamente mais cruel que a própria morte.
Esta é a libertação, o
golpe derradeiro: não os haverá mais depois.
A agonia martela a
alma, abala-a, sacode-a. Ataca por todos os lados: é a morte que quer
assenhorear-se. O corpo banha-se em suor nesse rude e supremo combate.
É o último sobressalto
do instinto de viver contra o medo de morrer.
Quando, já morto para
os que o cercam, o agonizante parece inerte e sem força, é que a vida se retira
para o fundo d’alma como para o último reduto; não quer sair, e desse fundo
túrbido, como do antro escuro do Gethsêmani, brota com força estranha uma
oração análoga à de Jesus... “Se é possível, passe longe de mim o cálice, meu
Pai!”
A agonia é, pois, antes
de tudo, o medo da morte, a tristeza de
deixar a vida, o instinto que se aferra a esses destroços que hoje se
chamam o corpo e amanhã serão o cadáver.
É evidente que a
primeira agonia de Jesus foi esta.
E em verdade porque não
a compreender antes que tudo assim?
Por que razão, a
pretexto de uma dignidade mal entendida, recusar-nos, a nós que temos de
agonizar e morrer, este último consolo de nos podermos dizer, quando estivermos
nas supremas trevas do fim:
– Eu tenho medo, porém Jesus teve medo antes de mim, Eu tremo, Ele tremeu. Eu não quisera morrer, Ele também não quis.
Oh! Como te será consolador então, minha pobre alma em ânsias, repetires nos últimos balbucios dos teus lábios pálidos: Pater, transeat a me calix iste. Pai, afaste-se de mim este cálice.
Verumtamen, non sicut ego volo sed sicut tu. Contudo, faça-se a Tua Vontade e não a minha. Fiat. Amen.
Tudo estará então nestas duas palavras, sobretudo na última: Amen, assim seja, é o fim de tudo, Deus o quer... Amen, assim seja! Glória assim mesmo a Ele: ao Pai, ao Filho e a Espírito Santo; eu me extingo, sou consumido. Eis a eternidade!... Amen! Assim seja.
Como tal, portanto, foi
bem esse medo do fim – e que fim deveria ser o Seu! – foi bem esse pavor do
suplício que deitou por terra a Jesus, o Filho do Homem, igual a nós na
natureza humana...
E isto me conforta: foi
essa luta entre a vida que não quer sair e a morte que quer entrar que Lhe
cobriu o corpo de suor, e a luta foi tão cruciante que o suor que escorria era
Sangue.
E isto me fortificará
nos terríveis e derradeiros suores da minha agonia.
Admitida esta primeira
causa, eu admito a seguir todas as demais, na agonia do meu Mestre amado.
É primeiramente o
horror da Justiça de Deus que vai abater-se sobre Ele; Ele é a Vítima
prometida, esperada, conservada, acalentada quase, para aquela hora.
Teve a sublime
imprudência de se comprometer para aquela hora por todos os pecadores; a
palavra foi dita – todos –, o contrato está firmado, não se lhe pode Ele
furtar.
Ora, aí está o vencimento [da dívida], o terrível vencimento; há que pagar, já que se fez fiador.
Nós não queremos crer,
porém chegará para nós, como chegou para Ele, esse vencimento último.
Devêra ser pensamento
em nós habitual, se conhecêssemos o abismo das nossas quedas, o perguntarmo-nos
a cada sofrimento que presenciamos: E para mim, que dor estará reservada?
Sobretudo se vemos o sofrimento de um inocente... E eu, quando chegar o
terrível momento do vencimento?... Ó meu Deus!... Este peso da Vossa Justiça
divina esmaga-me por minha vez: folgo, porém, de que meu Jesus tenha temido
também essa Justiça, até a morrer de medo. Tranqüilizo-me vendo-O estendido no
chão, triturado já por essa Justiça, cuja voz terrível ouço a convocar todas as
criaturas como a Seus carrascos: Vinde, acorrei, avenhamo-nos sabiamente
para oprimi-lO... Sim, rejubilo-me desse medo que O prostra e desse pavor
da Justiça que O pisa, como a uva no lagar.
Porque afinal, o que essa Justiça esmaga assim são os meus pecados; eles
lá estão todos, vejo-os no Seu pobre corpo, ó vergonha!... Nem um só falta, ó
ventura!...
Meu Jesus expiou-os pois; já agora eu não terei mais do abraçá-lO, tomar do Sangue do meu Mestre, cobrir-me dEle pela Confissão e pelo arrependimento, e em seguida poderei, como o poeta [Des Barreaux], desafiar a Justiça do Pai clamando-Lhe:
“Em que ponto, porém, incidiria o Teu raio,
Que não esteja coberto do Sangue de Jesus Cristo?”
Uma outra causa, de não
menos peso, da agonia do Mestre, é a vergonha que Ele experimenta de se ver
carregado de todas as iniquidades do gênero humano.
Representemo-nos uma alma, a nossa, chegada ao tribunal de Deus. Que silêncio... e que pavor!
De todas as partes, dos
recantos mais remotos do nosso passado, as menores ações acodem: cada qualquer
tem seu lugar, aquele que lhe deu em nossa vida a nossa vontade.
Há que responder por
todas: os pecados mais secretos e mais esquecidos reaparecem como se foram de
ontem. Todos os testemunhos se conjuram para acusar-nos: os da nossa memória,
os da nossa sensibilidade, os da nossa carne culpada e violentada, os do nosso
orgulho animado e dominador.
Deus se cala: só faz
escutar. Nós nos calamos também; estamos sucumbidos!
Tal é a primeira
atitude de Jesus no horto. Primeiro que tudo, está como atônito: ouve um clamor
violento elevar-se contra Ele: escuta, cala-se.
Ai! Não tem de
responder pela Sua Alma só: responde por todas.
Não é uma vida – a Sua – que se Lhe desenrola aos olhos ante a Face imutável de Deus Seu Pai... é a vida de todo o gênero humano. Tantos homens, tantas testemunhas; tantas testemunhas, tantas consciências que se abrem e se patenteiam; tantas vozes que saem das entranhas de todos os homens!
Já é, para um ente só,
um concurso esmagador este acúmulo de testemunhos manantes da própria
consciência: que dizer então de um homem que se achasse o confluente de todo o
gênero humano, tendo que responder por tudo e por todos?...
“Um homem na queda de várias torrentes, exclama Bossuet... elas O empurram, derrubam-nO, tragam-nO: ei-lO prostrado e abatido, a gemer debaixo daquele peso vergonhoso, sem ousar sequer relancear o Céu, tão carregada tem a cabeça e esmagada pela multidão dos Seus crimes, quer dizer, dos nossos, que verdadeiramente se tornaram os Seus”
(Bossuet, 1º Sermão
sobre a Paixão).
Chegam estes, com efeito, de todas as partes: as corrupções de Sodoma sobre a pureza divina; as exações de Tiro e de Sidon e as crueldades dos bárbaros sobre o manso Cordeiro que estende a cerviz ao cutelo.
Roma, Atenas, Nínive e
Babilônia, todas as civilizações antigas, elegantes e apodrecidas, isto
anteriormente; a depois dEle, toda a densa procissão dos crimes dos cristãos,
as covardias, as traições, asa infidelidades, as recaídas, as blasfêmias.
Um oceano de torpezas,
convocado por Deus, como por um assovio, de todos os confins do mundo, in
illa die sibilabit Dominus... (Is 7, 18), e vindo despenhar-se sobre aquele
pobre ser já por terra e quase morto.
De certo, bem está aí
com que fazer rebentarem todas as veias de um corpo e trilhar todas as fibras
de um coração. Que peso acrescentar ainda?... Outro mais.
A visão clara, nítida, precisa, por demais precisa, de que aquela agonia, aqueles padecimentos e aquela morte não servirão a todos; que só haverá mesmo, em suma, um pequeno número que os quererá aproveitar.
É este um sofrimento requintado; trabalhar em pura perda, descer tanto no opróbrio e no Sangue, e só tirar tão minguado proveito! Se ainda o mundo inteiro se assegurasse por tudo aquilo da sua salvação, mas tão poucos! Este pequeno número dos eleitos: mistério tremendo! E entre esses eleitos, tantos que deverão a sua felicidade eterna a um mero excesso de comiseração e de indulgência!
Para quê então? Quae utilitas in Sanguine meo? (Sl 39, 10). Por que aquela profusão inútil de Sangue?...
Deste modo, tudo
concorre para desalentar o Mestre. O medo natural da morte, o pavor dos
suplícios, a inutilidade daquele esforço sublime pela salvação do grande
número. A impotência de pagar as dívidas do gênero humano que não seja por todo
o Seu Sangue. O peso da vergonha que O esmaga aos olhos do Céu inteiro, tudo,
até o abandono dos Apóstolos, a desafeição que se opera neles, pois Jesus lhes
conhece o fundo do pensamento e vê-lhes a admiração, o escândalo, quase o
desprezo pela Sua fraqueza aparente e pelo Seu pavor natural. E depois, por
cima de tudo, a cólera do Pai que O vai esmagar justamente...
Porque Ele não pode
dizer que aqueles suplícios sejam exagerados ou injustos; não, eram
necessários.
Os Mártires eram
sustentados pelo testemunho da sua inocência; Jesus, porém, é acabrunhado até
por Sua própria consciência, por Ele amorosamente sobrecarregada de todos os
nossos pecados.
Em verdade, nada se pode acrescentar a esse mar profundo de ondas pesadas e revoltas que vêm quebrar de todos os lados, e que O cobrem da espuma de todas as humilhações.
(“A subida do Calvário”,
do Pe. Louis Perroy, SJ)
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