quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A Subida do Calvário 2º parte - IX. JUDAS.


SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO

IX. JUDAS.
 
 

Os planos de Deus prosseguem nas almas a despeito dos obstáculos que elas próprias lhes opõem. Tira Ele o bem do mal, e é o Seu maior triunfo, o Seu toque divino por excelência.

A árvore que os homens plantam só produz frutos segundo a raiz: só Deus tem o segredo de fazer sair a vida da morte e a glória do pecado.

Deste modo, o conhecimento da nossa essência, que o nosso pecado nos terá valido, tornar-nos-á circunspectos, humildes e mais temerosos do mal. Ele nos dá, consoante a palavra da liturgia, uma mais pronta continência, continentiae promptioris facultatem, uma pureza de alguma sorte mais precoce, uma castidade que se afirma logo de início, antes mesmo da declaração do perigo.

É próprio deste virtude o esquivar-se, porém ela se revela ocultando-se, ilumina-se fugindo, como esses fogos errantes da noite que se inflamam e traçam a sua curva brilhante no momento em que cortam, sem nela se deterem, a nossa atmosfera pesada e corrupta.

Assim Pedro estará daqui por diante alerta. Ele, que deve mandar, submete-se humildemente aos conselhos dos outros; as cartas que nos deixou são todas repassadas de humildade, de condescendência e de indulgência. Talvez [se não tivesse caído] ele tivesse sido severo em demasia; a inocência, mesmo relativa, tem um certo verdor que é a sua glória, mas que pode às vezes magoar, tocando-as por demais vivamente, as chagas abertas dos pecadores.

Pedro não mais tocará as feridas [alheias] a não ser com as suas mãos trêmulas e com as suas lágrimas penitentes.

Quando vem a derradeira perseguição, o martírio prometido, ele hesita, duvida, não sabe se é bastante forte, foge pela Via Appia; não se esqueceu da noite terrível, do átrio, da mulher que o importuna rindo, do galo que canta e daquela dolorosa blasfêmia: Eu nem sequer conheço esse homem de quem falais. É preciso que o Mestre o detenha e lhe anuncie que é mesmo desta vez a hora do grande amor que vai soar. Então ele volta, tal é, porém, o seu hábito de desprezo de si mesmo, que o seu último gesto, a sua última atitude, a sua última palavra é ainda uma humildade e uma penitência.

Quer morrer de cabeça para baixo. Para baixo é a sua posição, no chão, debaixo dos pés, no pó. Ó Pedro! Eu vo-lo digo em verdade, todo o que se humilhar será exaltado: e afigura-se-me que em torno daquele ancião agonizante, de membros estirados para baixo, de cabeça coberta de suor e de sangue e rente à terra, devia haver um murmúrio de Anjos que cantavam: Tu és Pedro, e sobre esta pedra, que se põe tão baixo, edificarei a minha Igreja.

Pedro, padecendo, crê, portanto, que expia, considera quanto lhe acontece apenas como um castigo que lhe é devido: e é assim que conserva aos próprios olhos a pureza do sofrimento.

Tomando as nossas cruzes como a penitência das nossas culpas, escaparemos também nós ao perigo da vanglória que se pegaria talvez a essas poucas misérias que suportamos valentemente.

Estendendo-nos na cruz, de cabeça para baixo, como se não fôramos dignos de erguer uma fronte carregada de pecados, sofremos humildemente, posto que realmente, e não percebemos que nesta postura humilhada nos asseguramos melhor os olhares para o Céu que se abre por cima de nós. Assim salvaguardado, depurado, o sofrimento é a floria da nossa vida: nós, porém, o ignoramos. Eis aí os triunfos de Deus, os que o mundo não conhece e não pode conhecer.

É o em que não pensa Pedro na sua desolação profunda, enquanto corre desvairado pelo fundo do vale do Cedron; mas é o em que pensa Jesus naquela sala baixa onde O prenderam para o resto da noite. Segue a Pedro, e já fechou a ferida sangrenta do apóstolo, ou pelo menos, como num rego, fez germinar nela a humildade.

Segue ainda outro homem que se vai desvairado também pelo mesmo vale do Cedron. É Judas.

Este homem leva no coração uma chaga aberta: havia com que fazer jorrarem dela a flux todas as humildades do mundo. Como Pedro do átrio, saiu ele transtornado do Templo, onde atirou as trinta moedas de prata; mais do que Pedro, confessou publicamente o seu crime:

– Entreguei o Sangue do Justo e pequei.

A confissão é completa. E ele foge, corre, ruge de dor... Chorou, porém, as doces lágrimas do amor e da penitência?

No fundo de há muito dessecado da sua alma não havia essa gota d’água que brota sob a pressão da dor profunda e humilhante. Está desesperado: a si próprio se detesta, cora rudemente da vergonha que lhe advirá em todos os séculos futuros. Judas! Judas! Esta palavra soa-lhe já aos ouvidos como a última e suprema injúria que se há de lançar à face dos homens.

Enquanto isto, também Pedro sente uma palavra zumbir-lhe nas têmporas: Renegado, renegado! As duas se valiam.

Pedro também cora de vergonha, ruge de dor, mas aceita a vergonha, curva a cabeça e chora. Não sabe se Jesus manterá a escolha gloriosa que dele fizera: nem sequer pensa mais nisto, pensa só numa coisa: traiu o amor inefável.

Filioli mei, carissimi, meus caros filhinhos, dirá ele mais tarde quando tiver de expor a doutrina e a história do Mestre. Deus foi beijado [traiçoeiramente] por um apóstolo e renegado por outro: este outro era eu, eu Pedro. Oh! Quem pode estar seguro de si mesmo? Eu vo-lo digo, irmãos, vigiai, estai alerta, há sempre alguém que ronda em torno de vós para vos devorar.

Pedro aceita essa humilhação histórica. Até o fim dos tempos ele, a pedra fundamental da Igreja, repousará sobre o Coração traído e renegado do Mestre.

Egressus foras flevit amare. Saindo, chorou amargamente. Estas lágrimas, era a humildade que corria. Correrá assim, misteriosa, em ondas ininterruptas, até o fim da vida de Pedro, como, em seguida a erupções violentas da natureza, vê-se, de súbito, no meio das escórias fumegantes e dos montes subvertidos, jorrar pura e fecunda de uma rocha entreaberta uma fonte abundante e nova.

Essa fonte alimentará a Igreja até a consumação dos séculos.

A alma que chora ama, chora porque ama. Judas não chorou porque não amava a outro que a si.

Ora, ele se tornara para sempre desprezível: restava só uma coisa, fazer desaparecer esse ente desprezível, suprimi-lo, apagá-lo se possível da memória pública.

Eis porque ele corre; transpôs a torrente do Cedron, passa através dos túmulos, topa naquelas pedras de mortos; a noite vai findar, o dia começa, ele se envergonha do dia. O pavor assalta-o nas entranhas; ele bate no peito, onde o coração não tem uma pulsação de pesar [verdadeiro] e de amor.

Conhece-se o fim. O desgraçado queria fugir para sempre daquele Jesus a quem havia beijado e traído; e cai eternamente nos braços da Sua Justiça tremenda.

Et suspensus crepuit medius, ET diffusa sunt omnia víscera ejus (At 1, 18).

Isto é intraduzível. Entretanto, se o tivesse querido, teria ele como Pedro recebido o seu perdão, o esquecimento [de sua falta] teria mesmo seguido esse perdão. Havia ainda bastante lugar na Face do Cristo para que outro beijo, o da reconciliação, apagasse o da negação. Jesus teria certamente oferecido a Face. Porque o que O faz chorar naquela pálida manhã principiante, por trás do molambo lançado à Sua cabeça, no fundo da sala de Caifás, é que Ele acaba de ver, no longínquo de um campo perdido ao pé do Monte do Escândalo, a árvore sacudida, o apóstolo enforcado; é que Ele sente retroceder daquele recanto maldito o Seu amor doloroso e impotente pela primeira vez.

Com essas duas feridas no Coração, o Cristo pode agora subir ao Calvário; tudo o que naquele ainda entrar ficará folgado. A lança do centurião feriu apenas um Coração morto: aberto fora-o já por Pedro e, principalmente, por Judas.

ORAÇÃO AO CORAÇÃO ABERTO DE JESUS CRISTO

Senhor, se Ele está aberto, esse Coração que eu traspassei, é para fazer manar uma torrente inesgotável de amor e de perdão.

No medo da Vossa Justiça, no tédio da minha consciência, no desprezo de mim mesmo, procurei nos flancos das montanhas o esconderijo secreto onde pudesse ocultar a minha vergonha e o meu terror.

Coração de Jesus, Coração aberto, Coração profundo, é no abismo das Vossas duas feridas, [a física e a espiritual,] que eu corro a me esconder.

Como o grão de areia atirado no oceano, eis que me perco no Vosso Sangue.

Ó Justiça severa! Não mais me procureis pois; a eterna Bondade no Seu seio me perdeu. Amém.

(“A subida do Calvário”, do Pe. Louis Perroy, SJ)

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