domingo, 17 de fevereiro de 2013

A Subida do Calvário 2º parte - X. PERANTE OS TRIBUNAIS.


SEGUNDA PARTE
AS TORTURAS DO CORAÇÃO

X. PERANTE OS TRIBUNAIS.
 
 

A alma que sofre isola-se no seu sofrimento.

Qualquer bulício que se lhe faça em torno, de boa mente ela o tem por coisa alguma, porque está demasiado ocupada por dentro.

No fundo dos corações feridos trocam-se diálogos apressados, agitam-se cenas pungentes, todo um sussurro de palavras entrecruzadas, variantes deste tema doloroso: Oh! como! Judas, tu... por um beijo... ou ainda: Eu nem sequer conheço esse homem de quem falais...

Porque há a traição brutal dos Judas que beijam e que entregam.

Há o medo covarde dos amigos que no momento do perigo nunca nos conheceram.

A Igreja, que é a continuação de Jesus, terá de suportar essas duas traições; tem-no também o cristão, e pelo mesmo título: ele continua Cristo.

Desde aquelas duas feridas, Jesus, dolorosamente ocupado no interior, vai sobretudo guardar silêncio. Daqui em diante, é silenciosamente que Ele atravessará os pretórios e comparecerá perante os tribunais.

A boca se fecha naturalmente diante da justiça que se torna injusta.

Nós temos todos, gravados na melhor parte de nossa alma, um tal senso de justiça, uma tal confiança nela, uma crença tão viva de que ela paira, quando ela vem a faltar a este grande dever e se faz parcial evidentemente, achamo-nos sem palavras.

Jesus autem tacebat.

Já é doloroso ver um homem oprimido justamente pelos seus delitos ou pelos seus crimes; é odioso senti-lo acabrunhado pelo ódio, pela opinião preconcebida e pela injustiça, mormente quando vêm daqueles que são juízes.

Jesus sentiu esta ferida interior.

Sentiu-a viva e profunda quando Se viu no meio daquela malta de criados, naquela sala alumiada pelos clarões ainda agitados das tochas e principalmente quando se viu em face de Anás, o ex-sumo Pontífice.

À primeira vista, a gente mal se explica que hajam conduzido o prisioneiro ao tribunal de Anás, visto não ser mais este sumo sacerdote: esta honra suprema coubera a José Caífas, seu genro. Mas, para os judeus, Anás permanecia sempre e apesar de tudo o sumo sacerdote tradicional.

Eles se recordavam de que ele fora deposto arbitrariamente pelos Romanos, e não se esqueciam de que arbitrariamente Caifás fora imposto por aqueles mesmos Romanos.

Os Judeus, como todos aqueles que perderam o seu antigo esplendor, aproveitavam a menor ocasião para lhe relembrarem o moribundo revérbero. Arrastaram Jesus primeiramente até Anás como um protesto.

Era pelo menos uma puerilidade, e era também uma bajulação para com o velho; era principalmente uma satisfação dada à invejosa ambição deste. Anás bem que pretendia governar fizera escolher pelos Romanos... em qualquer caso, devia ver em Jesus um rival perigoso do velho sacerdócio que ruia.

Sabia-se disso... e condescendia-se.

E depois, aos olhos do vulgo, era começar acertadamente os debates o pô-los assim sob o alto patrocínio dele.

Jesus, que compreendeu todos esses cálculos, sente-lhes vivamente o odioso, e quer, antes de entrar na via do silêncio, mostrar bem que não está sendo embaído em nada. Por isto, desde a primeira interrogação, responde com certa altivez, com certo desdém, que visa a provar que Ele não é nem conspirador vulgar nem obscuro agitador.

Inquirem-no sobre a Sua doutrina e sobre os Seus discípulos, como se fosse só isto que estivesse em jogo.

- Eu nada disse que seja secreto, responde Ele: a Minha doutrina todos a conhecem, e Eu nada tenho a informar-vos sobre este ponto... todos os que aqui estão a ouviram; interrogai-os, eles poderão responder!...

Isto Lhe valeu a bofetada de um bruto.

- Por que Me baterdes? responde Jesus. Se falei mal, mostrai-o... porém se não falei mal, por que baterdes?...

Essa bofetada provava a que grau de ódio mal contido e de violência disfarçada se havia chegado naquela assembléia convocada à pressa.

Vai-se logo às vias de fato; já não é, pois, um acusado, é já um condenado.

Jesus compreende-o tão bem, que muda então de atitude; a partir de agora calar-se-á... Para que falar? os juízes são executores.

Compreende-o igualmente Anás, e apressa-se a enviar Jesus, atado, ao genro. José Caífas morava em frente ao sogro.

Era só atravessar o pátio largo e lajeado, aquele pátio onde se aquecia a tropa e onde Pedro já começara a sua lamentável negação.

Jesus é arrastado, é uma passagem rápida, uma corrida de fachos; mal se pode distingui-lO através dos soldados que O comprimem e O empurram.

Ei-lo diante de Caifás, a sala está cheia. Devia haverem sentados a uma ponta, pelo menos vinte e três juízes, era o número estritamente necessário; sórdido, as testemunhas de acusação.

A borra está sempre no fundo.

Jesus está no meio. Entre aquelas duas massas sombrias, a Sua figura se destaca, nobre, alva, como que iluminada.

Ele olha fixamente os juízes, e atrás ouve saírem murmúrios confusos daquela turba malsã.

O interrogatório que se queria legal começa. Tudo se faz segundo os ritos augustos da justiça, previu-se, aliás, até a mais pequena minúcia: os secretários lá estão; as testemunhas, subornadas e apanhadas não se sabe onde, lá estão também... há só uma coisa que se não previra... e que sucede... Jesus não responde.

Nada Lhe pode abrir a boca altivamente fechada. O sangue lateja-Lhe ainda na face batida pela bofetada: Ele sabe muito bem com quem está tratando.

Jesus autem tacebat. Mas Jesus guardava silêncio.

Nada era mais exasperador para os Seus juízes, o efeito falhava e o plano lhes abortava; como pegar aquele homem pelas Suas próprias confissões, se Ele nada diz e nada quer dizer obstinadamente?

Aquele silêncio domina-os, vai esmagá-los.

Então, para lhe atenuar o alcance, falam todos ao mesmo tempo, juízes, sacerdotes e testemunhas. Só Jesus, que devia falar, se cala.

Que coisa mais augusta do que esse silêncio?

Quando tudo se esboroa em torno de nós, conservemos ao menos essa dignidade do silêncio. Deus o ouve, é o bastante.

In silentio et in spe erit fortitudo vestra (Is. 30,15).

A tua força, ó alma acabrunhada e traída, estará nesse silêncio em face dos homens que te não compreendem, e também na esperança em face de Deus, que a Seu tempo se lembrará da opressão que por Ele sofres.

É então que, num movimento culminante de exasperação, Caifás salta, de algum modo, no meio.

- Então nada tens a responder? chama-Lhe; e, a um novo silêncio de Jesus: - Pois bem: adjuro-te, em nome do Deus vivo, que me digas se verdadeiramente és o Cristo, o Filho do Deus bendito...

- Sim, Eu o Sou, respondeu Jesus.

Houve um momento de estupor; depois, repentinamente prorrompeu e avultou um imenso clamor. Precipa-se aquela gente, Jesus é subitamente assaltado, empurrado, batido... e logo arrebatado, como um felpa de palha desprezível por aquela turba infrene.

Chovem as pancadas, as bofetadas estalam, as bocas escarram:

- Blasfemou, blasfemou; e ei-lO que lá se vai, levado, arquedo, através do pátio frio, onde os soldados se esquentam ainda, onde Pedro acada de negá-lO, onde o galo canta à plena voz.

Foi então, nessa levada de um instante, que Ele olhou para o apóstolo, e o apóstolo se pôs a chorar.

Lançaram-nO numa prisão, para ali aguardar a manhã.

Ele ainda não havia liqüidado contas com a justiça. Certo que falara, a confissão estava registrada, mas sabia-se que aquela confissão arrancada de noite, numa sessão, por sua natureza, ilegal, qualquer que lhe tenha sido o aparato, não teria nenhuma força de lei.

Aos primeiros albores do dia torna-se, pois, à carga. Com grande pressa reúne-se de novo o Conselho; a encenação é visivelmente a mesma que durante a noite, apenas as testemunhas (que falta faziam?) não são chamadas. - Trazem-no, é um novo interrogatório: novos ultrajes. Ele sente profundamente o que há de ofensivo para a Sua dignidade na correrias que O obrigam a fazer por zelo da legalidade, perante tantos juízes e tntos tribunais.

Esta preocupação da legalidade no momento em que mais descaradamente é ela violada será um traço que se reproduzirá em todas as causas dos mártires de Jesus Cristo.

Assim, arrastado perante Anás, para satisfazer as susceptibilidades ambiciosas do velho; arrastado perante Caifás uma primeira vez para aí fornecer, com o favor da surpresa e do depoimento de testemunhas peitadas, um capítulo de acusação contra Si; arrastado perante Caifás uma segunda vez para ouvir oficialmente sancionar uma condenação que já e desde muito se havia decretado; todos estes ignóbeis processos revoltariam provavelmente Jesus se Ele não soubesse que desse modo devia expiar todas as injustiças humanas; se não visse ao longe os Seus apóstolos, os Seus fiéis, os Seus melhores amigos arrastados também de tribunal em tribunal, de pretório em pretório, e sem sobretudo, numa ordem mais alta, não sentisse que então nos merecia a tranquilidade  a confiança de que haveríamos mister quando, de pecados em pecados, como por uma longa cadeia rastejante, fôssemos trazidos ao tribunal dos sacerdotes para sairmos, não condenados como Ele, porém absolvidos e libertados pelo Seu silêncio e pela Sua resignação ante a injusta sentença que naquela manhã proferiam contra Ele.

Porquanto ela está definitivamente proferida.

Caifás tornou a representar a mesma cena, com algumas variantes diminutas, e tornou a perguntar-Lhe, outorgando-Lhe o juramento solene, se verdadeiramente Ele era o Messias.

- Se és o Cristo, dize-no-los então, bradava ele exasperado pelo silêncio e pela impassibilidade de sua vítima.

- Se eu vo-lo disser, não Me crereis... respondeu Jesus... Então, para que dizer?... Se eu vos interrogar para saber o que é que Me retém nas vossas mãos... não Me respondereis e nem Me soltareis... então para que dizer? Entretanto eu vos declaro, repetiu Ele altivamente: dia virá em que Me vereis, a Mim que esbofeteais e em quem cuspis, sentado à direita da Majestade.

- Então és mesmo o Filho de Deus?
- Sim, Eu o Sou...

Era tudo quanto eles desejavam, e nós também. Jesus vai morrer por afirmar que é Deus.

Jamais homem, se simples homem, fosse ainda "o mais belo gênio, o mais encantador dos doutores, a alma mais lírica ou mais idílica" (Renan), pois tudo isto se tem disto d'Ele só para O não chamar um Deus, jamais homem, se não passasse de homem, poderia ter falado desse modo sem uma deplorável, sem uma inexplicável loucura.

No momento em que é abandonado por todos os Seus, traído, renegado, sem esperança de ver subsistir a Sua obra, é exatamente nesse momento, quando tudo desaba em torno de nós, que por duas vezes, em face da morte que O espera, Ele afirma: Eu sou o Filho de Deus.

Ou isto era verdade, ou isto não era verdade.

Se não era verdade, então o homem já digno de lástima que se tinha diante de si não passava de um louco, de um desses alucinados de sonhos de grandeza ridícula: esta gente costumava-se enclausurá-la, acorbertá-la com a própria comiseração, mas não matá-la!

Fazer-se passar por um Deus, em verdade isto não molestava ninguém, se fosse falso.

Mas, e se fosse verdadeiro?...

De certo, a coisa valia a pena de ser estudada de perto. Com o passado, semeado todo de milagres e de prodígios, daquele homem, dada a Sua doutrina tão pura, tão elevada, ante a Sua calma e o Seu silêncio inexplicáveis, tinha-se de que suspeitar e com que instruir um processo que devia durar um pouco mais do que algumas horas numa metade de noite.

Eis aí o que reclama a mais comezinha eqüidade, se Ele fosse um simples homem... mesmo alucinado... Mas, e se fosse um Deus?...

Então ei vo-lo digo em verdade, escutai todos, opressores dos tempos futuros, digo-vo-lo em verdade, escribas, sacerdotes, anciãos do povo, e, para além de vós, juízes, tiranos, fazedores de leis, reis coroados ou sem coroa, vereis um dia... este Filho do homem vir na Majestade que corusca, sobre nuvens que reluzem no seio das tempestades e dos relâmpagos. Vê-lO-eis, - guardai bem, - e vós, que O haveis julgado, por vossa vez sereis julgados por Ele, sem apelação, desta vez, e para a Eternidade.

(A Subida do Calvário, pelo Pe. Luís Perroy
)

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